segunda-feira, junho 04, 2007

O anjo podre


Surgiu do nada, como quem nada quer. Vestes de caráter cortado em fatias desiguais. Memória balbuciante sem nítida definição de vivências. Dormia onde o sono lhe concedia apertado recanto. Acordava onde as sombras se retiravam ao aperto solar no rosto. Deuses da vingança requintada administravam seus humores. E os dias na megalópolis triturava-lhe as esperanças com a força de uma rotina. Qualificação oscilava entre mendigo e amnésico de fino trato. Esquecia o que era se alimentar até que o vômito das entranhas vazia, lhe facilitava o arremedo de autoconsciência.

A todos dizia ser um anjo e se punha a tocar sua flauta doce de onde melodias cabalísticas roçavam a vã sensibilidade da platéia que se dignava ouvi-lo.
Ninguém dele se aproximava. Uns tomados pela náusea provocada pela cultura da imortalidade de festim; outros pelo odor fétido que a pureza de sua insanidade como embalagem, lhe era conferida.

Tinha uma cândida atração por crianças. As quais disparavam troças em sua direção e em uníssono gritavam: “olha o anjo podre... olha o anjo podre”. E o impregnado de compaixão sorria clamando com os olhos, um brilho de ingênua sinceridade.

Entre tantas das muitas excentricidades, gostava de andar na chuva com sua inseparável flauta companheira executando melodias estranhamente alegres.
Certa ocasião, no solstício de inverno, foi visto sentado de pernas cruzadas num campo todo coberto de geada olhando para o bosque da periferia.
O bosque — todo ele composto de muitas árvores de cedro (uma raridade cultivada pela colônia libanesa) — oferecia uma possibilidade de efeitos cromáticos, de uma beleza insuperável nessa época do ano. Mas para os efêmeros passageiros desse barco tão volátil chamado vida, isso passava despercebido na maioria das vezes. Quem mais costumava prestar atenção ao fenômeno eram os mendigos e desocupados que perambulavam enregelados a procura de madeira para se aquecerem. Não que estivessem precisamente atentos ao espetáculo que somente aos de coração purgado até a última câmara era desvelado, mas porque o efeito trazia a descoberto galhos retorcidos, sobras e lascas de madeira aproveitáveis como ígneos cobertores.

Exatamente no dia 21 de dezembro postou-se diante do bosque, calmo, com os olhos fitos muito além dos cedros. Nesse dia não tocou na flauta. Era como se o momento que mais aguardava lhe fosse trazer a realização plena de suas mais íntimas esperanças; talvez um portal se abrisse e uma carruagem de luz aguardaria apenas que subisse e assumisse as rédeas de seu destino de fogo; ou, que os cedros ganhassem vida e de árvores passassem instantaneamente a condição de gênios alados prontos para alçarem vôo ao seu comando. Quem naquele instante olhasse para seu rosto, veria um semblante ardendo em vermelhidão resplandecente, lívido; seu olhar agora eram dois horizontes silenciosos; seu coração pulsava ao ritmo de uma tarantela mística si-len-cio-sa-men-te.

Começa o espetáculo. Labaredas lilás-alaranjadas iniciam os primeiros movimentos de um opus que para o “anjo podre” era uma sinfonia sem fim. Fachos prata-azulado faiscavam por entre os galhos finos; uma bola dourada avançava por entre as árvores e crescia a medida que avançava. Exultava e aos pulos gritava: “leva-me, leva-me Pai do fogo... leva-me para casa!”.
Toda essa manifestação atraiu a atenção de inúmeros mendigos da redondeza. Vários se aproximaram. Afinal para quem passa os dias sem nenhuma alteração da mísera rotina, aquele maluco, aquele “anjo podre” mal cheiroso, servia-lhes como um pequeno espetáculo estimulante.
Próximo dali vizinhos abastados em suas mansões fortificadas, incomodados pela pantomima de mais um Zé nada, chamaram a polícia.

De certa distância, os policiais, viram uma pequena multidão de esfarrapados formando um semi-círculo.
Ao chegarem cautelosamente, seus olhos não acreditavam no que viam. Nunca em suas vidas tão miseráveis haviam vivenciado algo tão inusitado.
Todos os mendigos tiravam suas roupas, peça por peça e as jogavam na grama geada que aos poucos avançava para revestir todo o campo e o bosque com sua tonalidade solidão.
A cada passo dado, os policiais sentiam um estranho aquecimento gradativo. Próximo aos mendigos o calor era tanto que tirar a roupa tornava-se um impulso irresistível. E foi o que os policiais fizeram juntando-se aos mendigos desnudos.

Em meio ao pra lá de maravilhoso efeito cromático por entre as copas dos cedros, a vizinhança empolada e indignada com a falta de atitude dos policiais, decidida, se aproximou daquela roda de gente com estranha atitude.
A mesma reação de todos que ali estavam presentes, tomou conta do grupo. O calor aumentava e cachecóis, mantas importadas, chales e bonés eram atirados ao solo por efeito de um calor anormal que a todos afetava.

De costas para todos, sentado em cima de um largo tronco decepado de cedro com pouco menos de um metro de espessura, estava sentado de pernas cruzadas tal qual um yogue, o anjo podre. Totalmente nu, olhava para as próprias mãos. O silêncio absoluto fazia eco aos ouvidos abstraídos dos presentes àquela cena jamais imaginada.

Aos poucos, ruídos de estalos esparsos aumentava de volume a medida que também aumentava o calor. Um raio preciso de 50 metros isolou a área da neve e do frio.
A essa altura os cedros abrasavam-se e abrangente vermelhidão tomou conta de tudo que havia por perto.
Um odor de madeira queimada passando para algo parecido com carne em putrefação, dominava o ar em torno de algumas pessoas. Outras mantinham-se impassíveis. O número das que sentiam náuseas com o odor cada vez mais fétido, aumentava. Começaram a vomitar e seus corpos imediatamente entraram em convulsão. Gritavam alucinados que era o cheiro de podridão daquele “anjo” sujo. Saíram correndo atropelando uns aos outros. O frio abraçou novamente seus corpos expostos a suas estúpidas percepções físicas. Correram trêmulos em ziguezague a procura de abrigo para o frio. Apenas sete restaram daquela turba. Sete e mais nenhum. Mantinham-se ali imóveis, abstraídos, aquecidos, alimentados por um calor protéico.

O que para os outros ardia em suas narinas como fétido, para esses sete elevou seus olfatos a um sândalo orgônico.
De súbito os sete notaram o anjo podre elevar-se em chamas. Labaredas consumiam sua carne; seu corpo desmanchava-se como cera quente até restar somente uma poça escura aquosa.

Não havia mais anjo podre. No seu lugar surge uma bola de luz crescente. Cresceu e cegou aos sete assustados desnudos: 3 mendigos, 3 policiais e 1 abastado.
A cegueira os levou a perda da consciência; a inconsciência os levou a despertar em meio a um comício político onde um empertigado candidato bradava seu projeto social para acabar com mendigos.
Olharam-se e sorriram em silêncio.O frio avançava implacável. Não havia o que temer e nem tremer. Havia uma flauta; havia o bosque.

Leandro Soriano

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