quinta-feira, março 10, 2011

Uma pequena história de amor

Rosebel não sabia o que era o amor, apesar de ser o amor. De longe, seu pai a observava e contrito, assuntava:


“Minha bela Rosebel, tens o fulgor dos raios do sol e tua pureza preocupa desde os eternos macrocosmos até os átomos infinitesimais; a fonte por onde a vida jorra acalenta teu desejo que freme por criar mundos que bailem ao teu redor. Aquece tuas mãos suavemente no peito deste que vela por teus passos puros como de uma criança a pular por sobre as estrelas suspensas no vácuo do céu.”


Ao completar o seu primeiro eão, os olhos de Rosebel cintilavam ao divisar os campos além. Um forte anseio tal qual um espasmo cósmico, ondulava em reverberações no profundo do sem limites.


— O que deve haver além desses anéis que tanto apertam meu coração?


Não tão distante dali, a voz sem corpo, soou o cântico das diferenças. E na canção que se formou, um chamado voou como uma pomba alva até os olhos de Rosebel.


Ao sentir a ardência do poder crepitar nas câmaras acesas de seu coração, a jovem alma, pulou nos braços do abismo das formas. A cada etapa de queda livre, o vento da consciência burilava com o cinzel do desejo o desabrochar de insuspeitas realidades.


No canto escuro da sabedoria, espreitava Ideário.


Tão logo se tornou concêntrico os olhos de dentro com os olhos de fora, Rosebel quis o que seu desejo queria: criar. E criou, criou, criou... criou tanto que o mistério das formas cristalizou a emersão do exterior diante de seus olhos. No reflexo desse ato, o amor escondeu-se na aparência. E Rosebel viu que era bom, serviu-se do sabor da gratidão do dever cumprido e deitou-se pela primeira vez na sombra de sua criação.


Assim nasceu o início. E do início o ciúme pelo fim. Pois o fim ama sem complascência o início de cada finito.

domingo, março 06, 2011

Nada, é ver.


No centro de Preter, ao grande relógio encimado em um bloco retangular de granito com aproximadamente 30 metros de altura por 15 de base, a multidão prestava a saudação regular. Circulavam ao redor do obelisco em contínuas espirais. De olhos fechados, inspiravam profundamente com o nariz apontado para o céu. Buscavam sentir no mais profundo da alma o odor que o tempo exalava.



Os anciãos místicos diziam que o tempo estava acabando. A única forma de detê-lo era através da inspiração. A cada golfada de ar retida nos pulmões o presente se mantinha ativo. Ao expirá-lo, o passado cobria o céu de cinza cada vez mais escuro.



O sacerdócio em Preter era praticado pelos cientistas ficando com os místicos a tarefa nada agradável de convencer as pessoas de que o tempo não era uma ilusão pois se ele acabasse o nada passaria a vigorar e diante do nada, nada pode ser feito. Nesse compasso, transcorria a vida em Preter. Certo dia um forasteiro sabendo do que se passava nessa cidade, adentrou os seus limites e indo direto ao sumo sacerdote o inquiriu:



— Magnânimo sumo sacerdote, peço-vos conceder-me vossa preciosa atenção para a exposição que farei para salvar esta que é sem dúvida um modelo de avanço civilizatório ao qual...



— Hora, basta! Diga logo o que quer. O tempo é curto — pontuou o intempestivo sacerdote.



— Tenho a solução para manter o controle sobre o tempo!



— Estou ouvindo.



— Criei o relógio sem ponteiros.



Nesse momento o sumo sacerdote enclinou o corpo para frente e arquejando as sobrancelhas, sorriu cinicamente aguardando a explicação.



— Nós vamos ludibriar o tempo. Todos os relógios da cidade não terão mais ponteiros. O relógio passará a ser meramente um círculo vazio. Ao olharmos para ele não saberemos que horas serão. Não haverá mais atrasos; não havendo mais atrasos não haverá mais pressa; não havendo mais pressa sobrará mais tempo; sobrando mais tempo nunca faltará tempo para se fazer alguma coisa.



— E como se organizarão as coisas? Os compromissos? As coisas precisam ter um começo, meio e fim.



— Depois de muito refletir sobre essa questão concluí que é justamente isso que nos impede de evoluir.



— Explique melhor.



— Somos muito organizados. Mas uma organização toda ela dependente do tempo. Por isso qualquer coisa que organizemos não durará para sempre. Um dia ela acaba e tudo precisará ser reorganizado. Chamamos a isso de evolução mas não passa de recolher os cacos e dispô-los em nova configuração.



— Mas isso não significa dar força total para o nada?



— Nada disso. O que acontece é que exatamente o nada contém tudo. O nada não tem nada a perder. Pois a ele nada se atribui.



— Isso está me parecendo uma filosofia zen.



— Se fosse, estaríamos na mesma. E isso de nada adianta. Zen ou qualquer outra coisa só acrescenta e a cada coisa acrescentada ao nada, o nada deixa de existir passando a ser algo. E isso é algo de que não se precisa. Algo nada tem a ver com nada.



Nada de horas, nada de minutos, nada de segundos, nada de instantes, nada. O que precisamos é de nada.



— Brilhante! Como não pensei nisso antes? — exclamou entusiasmado o decano dirigente. Como poderemos então concretizar essa idéia? Qual o próximo passo? O que temos a fazer?



— Nada.



— Só isso? Simples assim? Quer dizer: ficar de braços cruzados?



— Quando o tempo deixar de existir, o nada se encarregará de tudo.



— E qual é o nosso papel ativo nesse processo.



— Ficar totalmente quieto. Nada fazer.



— Mas isso não faz sentido!



— Ainda bem. Pois é essa a idéia: o nada está além dos sentidos.



— Tem que haver algum observador nessa história. Alguma coisa que perceba o que está acontecendo para comprovar, corroborar sua existência. Uma consciência.



— Claro que existe. Esse “observador” é o nada.



— Não acha que essa idéia está metafísica demais?



— Nada importa o que eu acho. Tudo que tem importância se julga melhor do que o nada. Dessa forma corre-se o risco de se ficar sem nada.



— Muito bem. Hoje mesmo irei anunciar a todos, o que tenho em mãos para resolver definitivamente o problema do tempo: Nada.