quinta-feira, dezembro 22, 2011

MAyall

MAyall não fazia a mínima idéia da distância a ser vencida naquela que seria a sua mais árdua empreitada. Nunca havia passado por uma experiência tal difícil e profunda. O espaço aéreo, sua via natural tão conhecida desde algum tempo após seu nascimento, não mais lhe oferecia o aveludado infinito onde flanar alternava quedas com a liberdade de controlar sua ascensão; O estado de alerta intensificou freneticamente as batidas cardíacas. Coisa que suas auto-consideradas vítimas, ao pressentir sua presença, imaginavam muito bem. Porém as intenções de MAyall não eram outras — e nunca o foram — além de seu talento puro para a caça da única “presa” que julgava importante: o vácuo. Era tudo que MAyall precisava... mergulhar na liberdade do vácuo — ato esse inaceitável tido como a maior tolice já empreendida por quem possua asas para voar. Só que para MYall, suas asas voavam para além da imaginação.

Mas com uma asa apenas, isso ficou impossível. E justamente agora que falta tão pouco para o encontro mais esperado de sua vida. Lá no cimo, à sua espera, estão os seus iguais.

O tempo voava e ninguém passava por ali. A sede lhe dava a sensação de que o sol estivesse na sua garganta. Sabia que seus iguais esperariam até esticar o limite máximo de espera como se o tempo fosse de borracha.

A capacidade da visão turvou-se acelerada pelo suor liberado em cascata por sobre os olhos; a nuca, de base de apoio, passou a ser um peso maior que o pescoço pudesse suportar; a queda era iminente... questão de poucos minutos.

O manto da noite cumpriu fielmente seu dever; as estrelas iniciavam seu lúdico ofício de perfurar o negrume do céu com seu brilho cintilante; a brisa, essa inesperada visitante, velava os intervalos semi-longos da ofegação de MAyall. Um atabalhoado besouro Titanus, no descaso do ato, bateu-lhe a fronte cedendo-lhe graciosamente um quase nocaute técnico.

O bico não fechava mais. E a reserva de esforço, aplicava na sustentação do bico aberto para evitar que colassem... aí seria o fim.
Esmagado pelo medo, jogou-se ao solo de costas. Sua última ação inteligente, supôs. Assim fazendo, evitaria que antes do último alento, lhe fosse impedido de ter como imagem gravada, o cosmos inapelavelmente majestoso nas suas miríades propostas do infinito.

Não se auto-comiserou. Esquecendo-se, perdoou a si mesmo por tudo que fez a si próprio, morrendo primeiro a ilusão de que, o mal que aos outros fizera, foram na verdade ações internalizadas no seu âmbito. Descobriu que o reflexo mata reverberando aos poucos... e corta asas também.

Fechou os olhos mas não o olhar; o que lhe permitiu sentir o corpo elevar-se do solo. Num átimo, percebeu que tentar entender afasta o entendimento. Parou. Algo o movimentou rapidamente.

Uma voz suave o convida abrir os olhos.

Como se estivesse por detrás de um vidro embassado, os borrões semi-coloridos, se aproximavam vagarosamente.

Súbito, não havia mais solo; as estrelas borrifavam luminosidade que lhe refrescava a alma. Os iguais o seguravam alçando-o ao mais alto das alturas.

Sem a necessidade de qualquer expressão através das palavras, soltaram-no em pleno espaço onde não havia em cima e embaixo. Era tudo o que queria; era o seu mais ansiado presente tal qual uma criança anseia pelo mais desejado presente de Natal.

Flutuar na insubstância da liberdade trouxe de volta a asa que lhe faltava. E junto, a felicidade do amor dos iguais.

domingo, novembro 27, 2011


As pessoas não andam
Vagueiam no espaço
a procura dos próprios passos
na esperança de encontrar o rumo
deixado por suas pegadas
feitas para despistar
o esmo da pressa inútil


quinta-feira, novembro 10, 2011




O brilho dos olhos nada deve ao brilho das estrelas

E elas, co-irmãs, acenam distantes do infinito

Um gesto silencioso, irradia aceno invisível

Eu, mudo, mudo diante do abismo que carrego

dentro de minha pequenez

que em pacientes conta-gotas,

não me deixa piscar

às beiradas de tão vasta imensidão

sexta-feira, outubro 07, 2011

Disso que não é.

Sou a parte menos conhecida de mim mesmo. As outras partes complementam o mistério do não saber o que sou (não “quem sou”).

Deram-me um nome após o nascimento. É a única coisa que sobrevive após a morte. No contexto de saber-se o que se é, muito atrapalha ser alguém. Pois acreditamos ser o que dizem que nós somos. Somos uma imagem pintada em uma tela social para agradar — ou desagradar, tanto faz— aos olhos de quem nos vê, inclusive nós mesmos. Desnudar o que está revestido por camadas de condições psico-sociais, é uma ação a nós, totalmente desconhecida. Não sabemos como fazer isso. Pois se o soubéssemos, não seríamos o que somos ou deixaríamos de sê-lo instantaneamente e aquilo que É real, num rompante do mais visceral silêncio, estilhaçaria nossa redoma de vidro na qual pretensiosamente chamamos de meu mundo, com a facilidade de um efeito especial cinematográfico revelando algo que, na verdade, nunca esteve preso, nunca nem ao menos chegou a ser algo.

Se não podemos expressar o que seja esse algo, esse silêncio tatuado na alma, ao menos a linguagem musical — tal qual um Claire de Lune — intenta evocá-lo no anestésica impulso de colher uma impressão relampejante de sua realidade.

É disso que estou de dizendo. Disso que não é. 

quinta-feira, setembro 29, 2011

Olhando pela janela da minha memória, revi, tão perto de mim, como se estivesse à distância de um braço, o clarão opaco das cenas restauradas pelo tempo tão relaxado de si. O mundo nunca é o mesmo quando as memórias despertam num repente de surpresa, saindo de uma pandora arquivada em algum recanto da nostalgia. Onde estava a vida quando o motim de minhas lembranças forçavam a tranca dos bloqueios da clareza cristalina ? Estaria ela ocupada demais com o nada, esse espesso fluido do inexplicável, a ponto de ocultar-me a única solidez que os pés de meu entendimento, clamam com sede de conhecimento?

Existirá um dia onde estaremos acima das memórias como um barco que flutua sem deriva, norteado por um horizonte que divide o infinito em fragmentos ainda mais infindos.

Memórias, memórias... ainda mais um pouco e inundarás meu convés com o dilúvio implacável dos registros oceânicos da eternidade. Assim que puder e o tempo deixar, fecharei a janela e o som oco do silêncio, corroerá o último fio da certeza:
sou.
Um algo que admite ser.

domingo, setembro 25, 2011

Não somos o que desconhecemos ser em período integral.
Somos o suficiente para um momento fugaz.

segunda-feira, agosto 22, 2011

A verdade é um caminho onde se anda descalço

sexta-feira, agosto 19, 2011

Cyber Soul



À distância de um braço, de um dedo, ou de um olhar, tão próximo estamos de nossas superficialidades que mal nos damos conta de nosso abarrotado vazio interior.  Quanto mais vemos, mais não queremos olhar; quanto mais estendemos nossas mãos, mais não queremos tocar; quanto mais andamos, mais não queremos chegar.

Aonde nos levará tudo isso? À algum lugar lá fora onde a verdade desfila como o modelo mais bem pago por nossa ignorância? Falamos desse incômodo intelectual como se estivéssemos nos referindo à insubstância dos elementos; falamos da alma como se fosse um teclado situado na bancada de nossa obscura razão: Sento, logo digito.

Alma não é sensação digital mas por ser delével, toca-nos a consciência.

Meu mais potente processador racional, não processa suas inorgânicas sugestões que tão habilmente tentam inocular o oco dos pensamentos com a vacina do entendimento. Sem perceber, sou o anti-vírus da minha razão estranhamente desconhecida.

A realidade da vida está dentro do virtual. Um chip me programa para ser o aparente. Usuário de mim mesmo.
Bites percorrem meu sangue cibernético. Quanto mais me informo mais me deformo. A verdade é binária. Processo minhas idéias sem fazer idéia de que sou processado. Meu subconsciente está abarrotado de temporários; Preciso urgente de uma formatação. Minha sabedoria é feita de bugs sem margem de conserto.

Palavras ditas ditam o rumo traçado pelo significado. Disparam para além da significação alcançada, um novo significado semente.

Palavras são vasos; significado é o vazio do vaso. O vazio torna útil o vaso. Um vazo pode conter a plenitude de vários significados como se fossem um só. Serão os significados que escolhem as palavras que desejam preencher ou serão as palavras que determinam qual significado melhor preenchem suas medidas? Significados permanecem sem as palavras como vida após a morte?

Palavra é corpo; significado é alma. Quem cria uma palavra é também autor de seu significado?

Sento, logo digito. 

sexta-feira, julho 29, 2011

Em meio à multidão
Não há olhos que me enxerguem
Não há nada que me dissolva em sede de vida
E a alma é água que evapora
Brincando de formas no céu da existência

Hoje sou eco
Amanhã, distância
Os dias passam como cenários
Como se da janela de um trem
Minhas esquecidas memórias
Acenassem para mim

segunda-feira, julho 18, 2011

Expectativa de vida

Não são os 75 ou 80 anos como média calculada de existência que me faz pensar nisso como o produto final de uma conta fria e realista da cota de tempo inevitável. Em nossa bula de nascimento já está datado o prazo de validade. Mas, expectativa de vida entra e sai pelas narinas; por um ouvido e sai pelo outro; não mastigamos a existência, a engolimos apressadamente. Apressada mente que não descansa um só instante mas sorve em grandes goles a própria razão de existir deixando pelo caminho rastros que se apagam assim que a pressão do peso consciente, caminha como se existisse um caminhar. Estamos sempre na expectativa de que a vida não desapareça, não faça visita de médico a ponto de nem para um cafezinho ficar.  Por quê? Agora, que a conversa estava boa, e já se vai? Ou é para ir mesmo e eu é que fico para trás; não sigo adiante, não mergulho no sumidouro do inexplicável.

É a minha ansiosa ou serena expectativa que afasta a vida para longe de mim; ou é a vida que faz vistas grossas como se eu não existisse? Passa por mim e me deixa falando sozinho, com meu gesto no vácuo estendendo-lhe a mão... E lá se vai, toda cheia de vida e eu aqui, com meus restos de consciência a ter-me como alguém na expectativa de que olhe para trás... uma olhadinha só e me dê um aceno, um “vem comigo”. E porque não vou?

Algo percebi: que a vida não olha direto nos olhos mas dá uma piscadela rápida e misteriosa como que aguardando, sem expectativas, que eu supere as minhas. Isso eu já fiz, há muito tempo. Só, que ainda não me dei conta.

terça-feira, julho 05, 2011

Não somos nós
Somos um nó
um só
Que não desata
o fio empoeirado 
Novelo da esperança 

Chuva no telhado
Contando o tempo 
Em gotas
Em gota
Gota
escorre vidraça consciência

E eu brincando lá fora
molhando-me de paz
me vejo daqui de dentro
Ah! Como sou incapaz

Não me assisto na primeira fila
Reinterpretando-me sem script
No canto de minha última fileira
levanto-me despercebido
na penumbra dos desejos
antes do fim, planejo
meu último ato:
uma saída

sexta-feira, julho 01, 2011

O fim...
Será como a gota d´água
a secar impassível ao calor do sol?
Ausência de memórias?
Ou todas elas avalanche a disputar
cada palmo da bruxuleante consciência?
Sou boneco de corda que sonha
sonhar encontrar o criador dos sonhos
Apertar-lhe a mão para sentir se
tudo não passa de um sonho
Ainda que meu coração — esse relógio de pulso
comigo a cada impulsiva batida dos segundos —
seja forte diante dos ecos de tão montanhosa nostalgia,
far-me-á um simplório vapor a deslizar suavemente na dissipação
Sem medo, sem alegria
Se ao fechar meus olhos
Eles se mantiverem abertos
Exaltarei as bodas do silêncio
Com elas sentir-me-ei um corpo oco de existência
Mas pleno de vida atrevid

sexta-feira, junho 10, 2011

Se eu soubesse o que é a vida


não escreveria poesias. 


Se eu soubesse o que é poesia 


passaria a vida tentando descrevê-la.

domingo, junho 05, 2011

Deixe a coisa ser o que é
Ser os passos mudos
De uma expressão qualquer
No fundo, todas as coisas são
Sem pensar, eu as descubro
Acomodadas no meio da incompreensão

As coisas são mutáveis
Sem pressa ou dor
Não são explicáveis
Da mesma forma que não o é o amor

Antes tudo fosse fácil
E todas as coisas fossem simples
Mas o que é, é coisa feita
Antes de qualquer entendimento
Depois que a compreendemos
Vira coisa explicada
E cada um que a toma pra si
Vê em sí que a coisa é nada

domingo, maio 29, 2011

Paisagem

Todos os que são
Tortuosos caminhos são
Rotina plástica é desastre
Feito nó, pó, eclesiastes

Ontem resistente
Dormente na minha memória
Sou passado
Logo à frente
No futuro do vinho
Que o sabor tem

Comovem-me os vivos
Pois tão morte
São consortes
delirando paisagens
esquecidas paragens
Janelas de um velho trem

terça-feira, maio 24, 2011


A paixão dos amados
que arde no encontro
não cresce em tamanho
inexata medida,
que caiba no coração 

Feito palha seca
sem resistência ao ardor
caladas almas suadas
apertados abraços
esquecem do amor 
antes louvado
agora tombado
altar destruído oco de fé

segunda-feira, maio 23, 2011

Comentário sobre a questão Vida após a morte para artigo proposto pela minha amiga Ana Guimarães.

 "um conto de fadas para quem tem medo do escuro"
Stephen Hawking



Um paralelo interessante sobre essa questão encontramos na mitologia como apoio para reflexão sobre a lógica. Como aquela que afirmando que 4 elefantes sustentam o universo, alguém questionou: "mas, onde se encontram os elefantes?" O sustentáculo da racionalidade do homem contemporâneo é cartesiana mas, a passos largos, vem sendo trincada nos seus sedimentos postulados. O que se vê hoje _ e isso de certa forma velado_ é o embate entre evolucionistas e criacionistas. Os primeiros, calcados no Darwinismo, afirmam por A+ B, que a vida surgiu como que randômicamente. 


Algo como uma descarga elétrica como fator ígneo, eletrificou um caldo de proteínas as quais foram se agregando e como um "Lego" aleatório, montaram  toda essa complexa máquina que é a vida nas suas variadas manifestações.

Principalmente a manifestação do ser humano que hoje dotado de um intrincado sistema bio-psíquico, escarafuça como um aprendiz de feiticeiro, os meandros da energia nuclear sem saber o que fazer quando se vê diante de uma sequência de portas que se abrem a cada descoberta da física avançada, de que o átomo não possui apenas um núcleo mas sim desafiam os limites impostos pelos conceitos dialéticos de pequeno e grande. Já os criacionistas se referem a essa afirmação dos evolucionistas, como a teoria do relojoeiro maluco onde um relojoeiro jogaria aleatoriamente para o alto as inúmeras peças e ao cairem se juntam inteligentemente nos seus respectivos encaixes.

Os criacionistas afirmam que não é possível que não exista uma inteligência por detrás da criação; afirmação essa que traça perspectivas mais férteis para o entendimento da Vida como um continuum onde consciência corrobora realidades. Infelizmente em termos acadêmicos, a supremacia do sistema evolucionista, como uma "caça às bruxas" vem eliminando sistematicamente das bases do conhecimento humano, essa vertente que oxigena valorosas percepções da realidade. Tanto que eminentes catedráticos nas mais proeminentes universidades como Oxford, Yale, Princeton, Harvard, Stanford, etc, vem tendo suas vidas acadêmicas destruídas por essa perseguição que mais lembra um estigma que a humanidade cultiva: a Inquisição do pensamento livre, diferente, que tem como um termo raiz a palavra herege que significa originariamente alguém que ousou ultrapassar um status quo moribundo e decadente.

sexta-feira, abril 29, 2011

Prontuário


Era um dia como outro qualquer. Não havia nuvens no céu.  Passava das 13h. A rua estava silenciosa.  Tudo foi muito rápido. Um choro forte invadiu todo o ambiente.

Causa mortis: nascimento parto normal.

Evolução do quadro geral: satisfatório. Desenvolvimento acima da média com aproveitamento nos aspectos de baixa importância tais como sonhar, ansiar e pressentimento pela existência de uma vida com V maiúsculo. Fator esse com forte indicativo de uma alta taxa de infecção no estado de consciência.

Evoluiu rapidamente quando em contato com conhecimento de origem supra acadêmica.

Total inapetência por modismos. Saciava a fome alimentando-se de originalidades.

Constantes dores no coração saudável. Causa: profunda nostalgia por algo perdido nas brumas do tempo.

Rara e desconhecida manifestação eruptiva na sensibilidade. Causa :  reminiscência da verdade.

O quadro evoluiu quando a pré-memória evadiu-se das profundezas do sangue liberando uma forte tendência ao puro discernimento o que agravou ainda mais o quadro geral da expansão contida. O organismo agora pedia uma evolução espiralada sem limites.

Não reconhecia mais as mesmas pessoas de sempre. Todas parasitas de si próprias em avançado estado de decomposição moral racional.

O fim, por fim, aproximou-se célere. Processo terminal eminente.

Vida por falência múltipla dos órgãos de manipulação da alma como essência humana.

Sorriso de Monalisa no rosto lívido e purpurino.

Lá se foi mais uma morte. A última. Sem volta.

quinta-feira, março 10, 2011

Uma pequena história de amor

Rosebel não sabia o que era o amor, apesar de ser o amor. De longe, seu pai a observava e contrito, assuntava:


“Minha bela Rosebel, tens o fulgor dos raios do sol e tua pureza preocupa desde os eternos macrocosmos até os átomos infinitesimais; a fonte por onde a vida jorra acalenta teu desejo que freme por criar mundos que bailem ao teu redor. Aquece tuas mãos suavemente no peito deste que vela por teus passos puros como de uma criança a pular por sobre as estrelas suspensas no vácuo do céu.”


Ao completar o seu primeiro eão, os olhos de Rosebel cintilavam ao divisar os campos além. Um forte anseio tal qual um espasmo cósmico, ondulava em reverberações no profundo do sem limites.


— O que deve haver além desses anéis que tanto apertam meu coração?


Não tão distante dali, a voz sem corpo, soou o cântico das diferenças. E na canção que se formou, um chamado voou como uma pomba alva até os olhos de Rosebel.


Ao sentir a ardência do poder crepitar nas câmaras acesas de seu coração, a jovem alma, pulou nos braços do abismo das formas. A cada etapa de queda livre, o vento da consciência burilava com o cinzel do desejo o desabrochar de insuspeitas realidades.


No canto escuro da sabedoria, espreitava Ideário.


Tão logo se tornou concêntrico os olhos de dentro com os olhos de fora, Rosebel quis o que seu desejo queria: criar. E criou, criou, criou... criou tanto que o mistério das formas cristalizou a emersão do exterior diante de seus olhos. No reflexo desse ato, o amor escondeu-se na aparência. E Rosebel viu que era bom, serviu-se do sabor da gratidão do dever cumprido e deitou-se pela primeira vez na sombra de sua criação.


Assim nasceu o início. E do início o ciúme pelo fim. Pois o fim ama sem complascência o início de cada finito.

domingo, março 06, 2011

Nada, é ver.


No centro de Preter, ao grande relógio encimado em um bloco retangular de granito com aproximadamente 30 metros de altura por 15 de base, a multidão prestava a saudação regular. Circulavam ao redor do obelisco em contínuas espirais. De olhos fechados, inspiravam profundamente com o nariz apontado para o céu. Buscavam sentir no mais profundo da alma o odor que o tempo exalava.



Os anciãos místicos diziam que o tempo estava acabando. A única forma de detê-lo era através da inspiração. A cada golfada de ar retida nos pulmões o presente se mantinha ativo. Ao expirá-lo, o passado cobria o céu de cinza cada vez mais escuro.



O sacerdócio em Preter era praticado pelos cientistas ficando com os místicos a tarefa nada agradável de convencer as pessoas de que o tempo não era uma ilusão pois se ele acabasse o nada passaria a vigorar e diante do nada, nada pode ser feito. Nesse compasso, transcorria a vida em Preter. Certo dia um forasteiro sabendo do que se passava nessa cidade, adentrou os seus limites e indo direto ao sumo sacerdote o inquiriu:



— Magnânimo sumo sacerdote, peço-vos conceder-me vossa preciosa atenção para a exposição que farei para salvar esta que é sem dúvida um modelo de avanço civilizatório ao qual...



— Hora, basta! Diga logo o que quer. O tempo é curto — pontuou o intempestivo sacerdote.



— Tenho a solução para manter o controle sobre o tempo!



— Estou ouvindo.



— Criei o relógio sem ponteiros.



Nesse momento o sumo sacerdote enclinou o corpo para frente e arquejando as sobrancelhas, sorriu cinicamente aguardando a explicação.



— Nós vamos ludibriar o tempo. Todos os relógios da cidade não terão mais ponteiros. O relógio passará a ser meramente um círculo vazio. Ao olharmos para ele não saberemos que horas serão. Não haverá mais atrasos; não havendo mais atrasos não haverá mais pressa; não havendo mais pressa sobrará mais tempo; sobrando mais tempo nunca faltará tempo para se fazer alguma coisa.



— E como se organizarão as coisas? Os compromissos? As coisas precisam ter um começo, meio e fim.



— Depois de muito refletir sobre essa questão concluí que é justamente isso que nos impede de evoluir.



— Explique melhor.



— Somos muito organizados. Mas uma organização toda ela dependente do tempo. Por isso qualquer coisa que organizemos não durará para sempre. Um dia ela acaba e tudo precisará ser reorganizado. Chamamos a isso de evolução mas não passa de recolher os cacos e dispô-los em nova configuração.



— Mas isso não significa dar força total para o nada?



— Nada disso. O que acontece é que exatamente o nada contém tudo. O nada não tem nada a perder. Pois a ele nada se atribui.



— Isso está me parecendo uma filosofia zen.



— Se fosse, estaríamos na mesma. E isso de nada adianta. Zen ou qualquer outra coisa só acrescenta e a cada coisa acrescentada ao nada, o nada deixa de existir passando a ser algo. E isso é algo de que não se precisa. Algo nada tem a ver com nada.



Nada de horas, nada de minutos, nada de segundos, nada de instantes, nada. O que precisamos é de nada.



— Brilhante! Como não pensei nisso antes? — exclamou entusiasmado o decano dirigente. Como poderemos então concretizar essa idéia? Qual o próximo passo? O que temos a fazer?



— Nada.



— Só isso? Simples assim? Quer dizer: ficar de braços cruzados?



— Quando o tempo deixar de existir, o nada se encarregará de tudo.



— E qual é o nosso papel ativo nesse processo.



— Ficar totalmente quieto. Nada fazer.



— Mas isso não faz sentido!



— Ainda bem. Pois é essa a idéia: o nada está além dos sentidos.



— Tem que haver algum observador nessa história. Alguma coisa que perceba o que está acontecendo para comprovar, corroborar sua existência. Uma consciência.



— Claro que existe. Esse “observador” é o nada.



— Não acha que essa idéia está metafísica demais?



— Nada importa o que eu acho. Tudo que tem importância se julga melhor do que o nada. Dessa forma corre-se o risco de se ficar sem nada.



— Muito bem. Hoje mesmo irei anunciar a todos, o que tenho em mãos para resolver definitivamente o problema do tempo: Nada.

quinta-feira, janeiro 27, 2011

O cego

Havia um reino onde seus habitantes eram todos tecelões. Não conheciam outra atividade. Teciam vestes do linho abundante cultivado nos campos vastos e generosos. Erguia-se o sol e os tecelões já prontos, fiavam mergulhados em serena e profunda concentração. Suas vestes era o que existia de mais importante em suas vidas. Vestir-se era uma arte; e também uma ciência. Tanto que para cada fase da vida era meticulosamente estudado a tecedura com variações de tramas que se alinhavam adequadamente ao corpo de cada habitante.


Certo dia, distraidamente, um andarilho adentrou os limites do reino e foi ter em pleno centro da sede do reinado. Imediatamente chamou a atenção de todos pois algo incomum se apresentava. O andarilho estava nu; completamente sem vestes. Um coro de Ohhhhhh!!! ... das senhoras e dos mais pudicos senhores, se fez ecoar. As damas escondiam os rostos das crianças na intenção de evitar que elas tomassem conhecimento da real natureza existente por debaixo das vestes. Afinal, nunca naquele reino alguém fora visto sem suas vestes. “Que infâmia!” diziam todos.

O caminhante se manteve parado com o semblante sério direcionado para onde o nariz apontava. Nenhuma piscadela, nenhum gesto facial direcionado para direita ou para a esquerda.

Em meio aos apupos e achaques da turba, uma criança puxando a veste da mãe, observou em voz alta:

— Ele é cego! Ele é cego!

Imediatamente todos pararam com a balbúrdia e focalizaram seus olhares para o calejado andarilho. Estrondosos risos se fizeram ouvir por todo entorno da sede central.

De repente o andarilho sério sem esboçar nenhum traço do mais leve sorriso, disse:

— Saudações a todos. Digam-me, em que região me encontro?

— Adentrastes desapercebidamente no reino dos tecelões — disse uma voz empostada do alto da escadaria da sede.

— É mesmo? Ora, nunca ouvi nada a respeito de tal reino. Como é por aqui? Podeis descrever-me?

— És desprovido da visão por nascença meu caro peregrino sem rumo? — indaga a voz.

— Sim sou. Nunca vi a luz do sol nem das estrelas. Não sei que cor tem o céu. Nem ao menos tenho conhecimento do que possa significar isso que chamam de cor.

— E como podemos lhe descrever algo ao qual não tendes e nem podes ter nenhuma referência visual?

— Mas eu posso sonhar. E é nos sonhos que busco minhas referências. Certa vez sonhei que estava em queda livre como uma pedra que despenca dos rochedos. Ao cair, senti minhas costas cravadas por várias formas pontiagudas tão finas como agulhas. Alguém então me disse que eu havia caído em cima de um roseiral. E que todas as rosas ali plantadas eram vermelhas.

Dessa forma associei a dor profunda com o vermelho das rosas.

— Mas que forma estranha de ver as coisas! Porque tem que ser através da dor? Porque não através do perfume? — redarguiu alguém na multidão.

— É fato, concordo. Porém quem me garantiria a autenticidade do perfume? A dor a qual me refiro não é exatamente uma dor física, mas, é a que me deixa consciente. Consciente eu “vejo”; e “vendo”, sei distinguir sonho de realidade.

— Essa é boa mesmo! Como pode você sendo desprovido da visão distinguir o que é sonho e o que é realidade?

— Você que tem a visão, e que pelo visto sabe bem discernir o real do sonho, poderá, talvez, entender o que tentarei explicar — disse o andarilho.

— Ótimo, então explique-me; sou todo ouvidos e olhos... E a multidão desabou em gargalhadas após essa irônica e mordaz resposta.

Sem se abalar, o peregrino calmamente expôs suas idéias:

— Amigos, nesta existência, nasci sem poder ter o privilégio de enxergar; ver o mundo em todo o seu esplendor com sua rica natureza; mas nem sempre foi assim. Houve uma era muito antes de nascer e morrer, em que minha visão era total e perfeita. Tudo e a todos minha visão alcançava e penetrava; tal era esse dom que com a simples pressão de minha vontade, poderia aprofundar-me tanto micro como macrocosmicamente qualquer recanto de vida; maravilhava-me descobrir mundos em uma partícula atômica; depois dava saltos visionários que abrangiam os quatro cantos do infinito macrocósmico. O alcance dessa visão não apenas enxergava mas criava vida, criava mundos.



Porém em certa ocasião voltei meu dom para um domínio onde a visão que tive foi de meus próprios olhos olhando a mim mesmo. Enamorei-me do que vi; e o que vi fez surgir em mim um sentimento que nunca houvera experimentado: o poder. E do poder veio a vaidade e da vaidade algo endureceu no âmago do meu ser. Nasceu a centralização em mim mesmo. Isso afastou-me da luz. Ficar cego foi uma questão de tempo. Eu que só a eternidade conhecia, perdi algo que vocês tentam copiar mas não atingem: a veste sem sutura.

— O quê! Você possuía a veste sem costura? Estamos tentando há séculos! Nossos antepassados deixaram-nos indicações e diretrizes escritas em longos livros; escolas surgiram para ensinar várias gerações mas nossas melhores vestes desfiam com o tempo e perdem sua alvura. Conte-nos qual a técnica, o conhecimento para confeccioná-la sem que um só fio se entrecruze na costura? Mas espere... você acabou de dizer que nasceu sem a faculdade da visão. Como então pode dizer, que nem sempre foi assim?

— Em meus sonhos, eu posso enxergar. Só que as visões são de uma realidade que vocês não enxergam. Para mim é tudo muito claro; para vocês é como se fossem todos cegos.

— Então você poderá nos ajudar a tecer a veste sem costura.

— Minha única ajuda pode ser ensinar a vocês aquilo que vocês mais temem.

— O que nos poderia ser tão temeroso além do fato de nossas vestes não perdurarem muito tempo?

— A vossa nudez. Enquanto não abrirem os olhos para o que as suas vestes na verdade escondem e não simplesmente cobrem, será em vão toda essa cultura tecelã. O que na verdade chama de vestes, não passa de trapos, andrajos de uma vergonha “civilizada”.



Dizendo isso diante de olhares boquiabertos, desabou ao chão duro como rocha.

Ninguém se mexeu um milímetro por aquele corpo estatelado.

Então a criança se aproximando disse:


— “Ele voltou a enxergar”.