quinta-feira, março 29, 2007

Ser ou selo

Memórias endereços
Momentos vividos
Alguns perdidos
Noutros residência

Leva-me, vida,
Correspondência
A essa abstinência
Na espera do meu viver

Bato-me à porta
E o que me importa
É se estou para me atender

Avançado da hora
Quase indo embora
Chega-me a missiva

Nela, como estopim,
acende-me o silêncio
Outrora guardado
Agora lembrado

Sou o que era
Resto de era
A bem da verdade
Nem sei mais de mim

Eis que me acordo
Ao último zelo
Não é sonho, posto ciente
Sei-me... é um caminho
Origem do selo

sexta-feira, março 16, 2007

A história de NInguém.


Tarde chuvosa de domingo e Ninguém nasceu. Era um desses domingo-feriados que por obra e graça do calendário, anulou o que poderia ter sido um fim de semana prolongado. Mas, as atenções da família estavam todas voltadas para Ninguém — se é que se pode chamar de família, uma mãe “tropeira”, uma avó de 87 anos cega e esclerosada e um cão vira-lata de três patas; de uma família assim, o difícil é que possa advir algum fenômeno chamado atenção. O pai, nunca tomou conhecimento de Ninguém. E Ninguém jamais o teria tão perto como um filho ao alcance das mãos.

Ninguém era silencioso; quase não se escutava seu choro. Se alimentava mais por distração da mãe do que por um ato de amor materno. Isso Ninguém desde cedo saberia seu significado.
Segunda-feira a mãe teve alta. Foi para casa sozinha levando — meio que por obrigação — Ninguém a tira-colo. Pegou um ônibus depois de esperar uns 25 minutos mais ou menos debaixo de forte calor. Ninguém, mesmo diante dessa situação, não deixou de mergulhar em profundo sono.

Diante da calamitosa situação familiar, Ninguém nunca se deixou abater e cheio do destemor e um forte sonho de ser alguém, traçava planos, para atingir seu objetivo.
Ninguém chegou à adolescência com a sorte dos renitentes. O imponderável do destino afeiçoando-se por Ninguém, o conduziu às portas de uma nova família que mediante pura empatia, o adotou garantindo a Ninguém tudo aquilo que a decência possa garantir. A mãe, sentindo um alívio, desfez-se daquele “incômodo” que havia invadido sua tão vazia existência (só ela não sabia disso)

O tempo passou e Ninguém tornou-se o que esperava de si próprio: realizado e feliz.Tudo o que Ninguém mais queria era constituir uma família. E Ninguém conseguiu.Teve um, dois, três filhos; dois meninos e uma menina. Ninguém procurou ser para a família o que a família não havia sido para Ninguém.

Então sobreveio o golpe que ninguém esperava. Ao chegar em casa após um estressante dia de trabalho, Ninguém encontra sua tão amada esposa sendo amada por um ninguém qualquer. Chocado, atônito, Ninguém ficou parado sem saber o que fazer. Numa explosão sanguínea, berrou para os dois saírem de sua casa que havia construído com muito sacrifício.
Desse dia em diante, Ninguém nunca mais quis saber de alguém. Dedicou-se de corpo e alma aos filhos.Os filhos cresceram, tornaram-se adultos, casaram e foram ter suas vidas. Ninguém ficou só, consigo mesmo.

Na velhice, Ninguém acreditou que fez o melhor que pode. A noite, em sua varanda, olhando as estrelas, Ninguém pensou em Deus.E esse pensar fez Ninguém acreditar que a vida que o trouxera, agora vinha lhe buscar.
O fim que Ninguém esperava chegou sem se atrasar. Não houve dor, não houve agonia; o que ficou para sempre foi a passagem de Ninguém, que o tempo esqueceu sem regatear.