sábado, agosto 04, 2007




A incumbência

Aos 7 anos, Daremon levantava-se às 6 horas, chamado por seu pai Estilianos, para uma caminhada matinal. Estilianos dizia a seu filho que era para saudar o sol nascente e receber os primeiros raios abundantes de energia. Isso ajudaria no seu desenvolvimento tanto físico como mental. Daremon a tudo ouvia com muita atenção. Tinha por seu pai uma profunda admiração, respeito e muito amor fartamente recíproco. Os dois amigos, depois de algumas frutas saboreadas, caminhavam por uma estrada de terra entre várzeas e plantações de milho e soja. Pássaros encarregavam-se de proporcionar a trilha sonora para a ocasião.

Daremon sabia que quando seu pai se aproximasse de uma formação rochosa que ficava a uns 100 metros da estrada, lá vinha uma conversa que muito lhe despertava o interesse.
Escolhendo o melhor e mais confortável lugar para o filho, Estiliano encostou-se a uma grande pedra como se fosse uma poltrona.
Um silêncio sem ecos, se instalou.
— “Filho, daqui há 14 anos, você terá um sonho. Nele se apresentarão 3 portas fechadas. Uma delas, você deverá abrir. Mas não será com as mãos. A forma como irá fazer isso, estará encerrado no lugar mais nobre dentro de você. Escolhas... é só o que temos de concreto. A conseqüência é o que o torna forte para continuar. Ou não”.

Após essas palavras, Estilianos levantou-se com a flexibilidade quase atlética que sempre procurou manter.

— Vamos Daremon, nossa caminhada mal começou.

Um céu sem palhetas para descrevê-lo, cintilava. Ao longe, as duas silhuetas caminhavam pela estrada de areia tão fina como os sentimentos. Vez e outra, Daremon arriscava um olhar de alegria para o pai ao seu lado.
Eram dois a caminhar. Mas eram muitos os caminhos a serem percorridos.

Estrelada a noite o sono veio. Um sono sem sonhos. Um mergulho no mais profundo do pequeno Daremon restaurou todas as suas energias. Descanso justo para quem terá pela frente os dias dos anos que se seguirão.

Um dia após completar 14 anos, Daremon foi convidado por seu pai a encontrá-lo na habitual formação rochosa onde lá um especial presente lhe aguardava.
Enquanto caminhava ansioso em rápidas passadas a esse encontro, na mente de Daremon desfilavam idéias fecundas sobre o quê seria esse “especial presente de aniversário” que o aguardava naquela tarde de verão.

A poucos metros das rochas, lá estava sentado seu pai, recostado à mesma pedra como sempre fazia. Um aceno recíproco acelerou os passos de Daremon. Um abraço que mais do que um abraço entre pai e filho, foi um abraço fraterno entre duas almas abertas.
— Este seu presente, meu filho, é mais do que um presente. É um testamento atemporal.
Sem entender muito bem essas misteriosas palavras do pai, Daremon assentiu pleno de confiança de que se tratava de algo de muito valor.
Estendendo-lhe uma caixa de madeira de 35 por 25cm de largura suficiente para acolher um livro, Estilianos olhou fixamente nos olhos de Daremon que tocando-a com as mãos sentiu-a retida pelas mãos firmes do pai enquanto este lhe dirigia as palavras: “ Você pode abrir a caixa mas prometa-me que o conteúdo somente após minha morte. Prometam-me isso. Resista a curiosidade.”
O jovem coração bateu num rápido descompasso diante do que ouviu. Se recompôs recolhendo as mãos com a caixa, lentamente. O pai lhe sorriu e disse jocosamente: “Não pense que vai se livrar de mim tão cedo.”
Um sorriso tímido relaxou o semblante de Daremon. “Vamos, abra” — disse-lhe o pai.
Abrindo a caixa, Daremon encontrou um livro. Era o que suspeitava. Na capa escura estava escrito “Palavras do Fogo”. Fixou os olhos no título por um pouco de eternidade.
Fechou-a num impulso. Olhou para o pai esperando o que viria a seguir.

Voltaram os olhos para o entardecer. Na silenciosa vermelhidão daquele momento, abraçados, desceram até o caminho que os levaria de volta ao lar.
No caminho Daremon não resistiu e perguntou: “Pai, abrir esse livro tem a ver com o sonho das três portas?” A essa pergunta, Estilianos apenas olhou bondosamente para o filho. Daremom entendeu.

O inverno se iniciou. Com ele um frio impiedoso gelou as noites na região.
Na casa onde Daremon morava, havia um recanto muito especial: era a biblioteca. Nela, Daremon gostava de ficar desde pequenino junto com seu pai. Uma sabedoria inata tornava-o silente à concentração da leitura de Estilianos. Imitava-o mesmo sem ainda saber ler uma única palavra.

Mas agora a biblioteca transformou-se num recinto de aconchego onde os dois travavam longas horas de apaixonadas conversas.
Em uma dessas frias noites, se encontraram na biblioteca e se puseram a conversar.
Daremon, já com seus 19 anos, bombardeava seu pai com temas filosóficos, desenvolto e muito à vontade.

— O que é, e o que não é real?
— Realidade só existe se existir uma consciência para interpretá-la — Disse-lhe Estilianos.
— Com a minha consciência posso dizer agora que percebo objetos variados à minha volta. Posso me levantar daqui e tocá-los. Assim, direi convictamente que são sólidos, reais — Afirmou Daremon.

— O que lhe dá essa convicção são os sentidos. E esses sentidos só são sencientes porque há descrição registrada de cada objeto, de cada elemento antes de você tocá-los.
Um conjunto quase infindável de descrições formam como que cubos, peças, um grande Lego. O que é feito é que lhe é ensinado a montar com esse Lego, objetos seguindo interpretações previamente organizadas.

— Mas quem as organizou o fez partindo de que ponto de referência?

— A referência foi a consciência da limitação. Esse é o único ponto de referência que temos. A consciência está enfeixada dentro de um círculo limitado pelo conhecido. O que ela faz é forçar a expansão desse círculo catalogando e renomeando as várias interpretações, os vários Legos, diante do desconhecido, tentando dessa forma tornar o que é desconhecido um agregado ao seu limite. É a Ilusão uma falsa alusão à possibilidade de que através dos sentidos “construímos” a realidade. Esse desconhecido passível de tornar-se “conhecido,” é o velho jogo de remontagem possibilitado pelo Lego de nossos sentidos. Mas há uma possibilidade de “salto quântico” dessa limitação. E não é com os sentidos que isso será possível.
Nesse momento Estilianos parou como quem está aguardando uma manifestação de interesse do filho pela continuidade da conversa.

— E onde se encontra essa possibilidade? — Indaga Daremon sem titubear.

— O local onde se pode encontrar não difere muito do princípio da “caça ao tesouro”. Isso mesmo. Aquela brincadeira tão conhecida na nossa infância. Alguém escondia algum chocolate, pacote de balas ou outra qualquer guloseima e lá íamos nós ávidos e cheios do espírito de aventura pura no encalço do tão valoroso prêmio. Isso nos enchia...
— Pai, pai... desculpe interrompê-lo mas me parece uma referência tão simplória para explicar algo tão grandioso, enigmático como essa metáfora do “salto quântico”.

Estilianos, compreendendo o natural frescor do ímpeto da juventude, pausadamente esticou o braço para apanhar mais um pouco de chá do bule irlandês que havia recebido de sua amada Beatriz, mãe de Daremon, pouco antes de sua morte prematura. Após o gesto, deteve-se a observar o bule por alguns segundos virando-se em seguida para Daremon que captando a aura significativa do momento, baixou a cabeça respeitosamente num impulso reflexivo.
— Dê uma olhada aqui na base do bule, Daremon.

Daremon se aproxima do ponto indicado por seu pai e pergunta do que se trata.
— Olhe atentamente, Daremon. Procure observar com toda sua atenção e me descreva o que observa.
— O que vejo são esses detalhes finamente trabalhados formando arabescos clássicos. Me parecem simétricos galhos de uma planta. Sim, é de uma planta. É de uma roseira. Um exímio trabalho de artista, certamente.
— Você consegue perceber o que há próximo à rosa na ponta do galho?
O bule já então havia perdido a quentura máxima devido à baixa temperatura ambiente, o que permitiu a Daremon pegá-lo confortavelmente com as duas mãos e contorná-lo com atento olhar.
— Nossa! Isso aqui me parece um dragão expelindo fogo. Incrível! Como alguém pode esculpir tão minúscula figura nesse metal? E com tamanha riqueza de detalhes. Estou impressionado. E nossa! Ainda tem aqui o que me parece uma casa no alto de uma arborizada montanha! É realmente fantástico! O que é impressionante pai, são essas riquezas de detalhes tão minuciosamente trabalhadas. Quem é o autor desse magnífico trabalho de arte em proporções tão microscópicas?

Estilianos se recosta na poltrona e solta uma gostosa risada espontânea e dirige o olhar cheio de um brilho que parecia indicar o quanto estava repleto de uma energia contagiante.
— Daremon meu amado filho. Esse é o tesouro.
— Como assim pai? Não entendi. Isso tem ligação com o quê estávamos conversando sobre a metáfora?
— Pare um pouco e deixe-se pensar.
Daremon seguiu a indicação do pai e silenciou-se por alguns instantes.
— Você quer dizer que observar atentamente detalhes tão microscópicos, passados despercebidos, nos conduzem a esse salto de consciência? Seria isso?
— Pense mais um pouco, sem pressionar-se.

— Já sei. O autor. Quem é o autor de tamanha proeza criativa é o ponto chave.
Nesse instante o brilho nos olhos de Estilianos pareceu saltar em chispas por todo ambiente.
— Sim é isso! Exatamente isso. Não se sabe a autoria de uma obra tão rica. Você se desprendeu por algum momento viajando nos detalhes esculpidos e se esqueceu completamente de pensar na autoria. O que importa? Se você viesse a conhecer o autor dessa obra, faria alguma diferença no que você acabou de sentir? Você poderia até se decepcionar com sua aparência e personalidade. E se fosse alguém em andrajos e mal cheiroso? No entanto isso não alteraria a essência do que você percebeu. O que tem o poder de alterar essa essência é a sua atenção. Esse é o princípio do salto quântico: não há como se conhecer o autor da obra criada. Somente a atenção é passível de ser conhecida. E a atenção conduz à intenção. O ser humano passa o tempo de sua vida sofisticando metodologias para definir, para catalogar, organizar, brincar com seu Lego perceptivo com o intento de conhecer o autor daquilo que ele não pode explicar. E como não se pode encontrar explicação, criam-se conceitos que depois serão substituídos por outros conceitos e assim sucessivamente. Há algo que o homem nunca irá conhecer. E esse algo é o Autor. Por isso o que lhe resta é tão somente “saltar“ os degraus de sua atenção.

Estilianos parou de falar. Sentiu que era hora de interromper a conversa. Daremon ao se notar, percebeu que estava encurvado, sentado em cima de uma grande almofada no chão bem próximo a seu pai. Já se passava da 1h da madrugada. O tempo havia concedido um pequeno vácuo de eternidade naquele ambiente tão aconchegante e tão aquecido pela interação dos “dois amigos”.

Estilianos levantou-se dizendo a seu filho que subiria até o banheiro para preparar-se para dormir e que Daremon deveria fazer o mesmo. Afagou-lhe o cabelo e subiu.

Daremon continuou ali sentado ainda mergulhado em tudo aquilo que seu pai lhe havia dito. Um carroussel de idéias girava em sua cabeça quando foi interrompido por um barulho seco e pesado vindo lá de cima.



Correu apressadamente. Pulando de três em três degraus, subiu a escada chamando por seu pai. A porta entreaberta do banheiro mostrava Estilianos deitado no chão com os olhos arregalados. Um grito carregado e ofegante de Daremon preenche a casa. Corre até o móvel ao lado da cama do pai onde ficavam os remédios para o coração. Mãos trêmulas e cegas, procuravam desesperadamente. Ao encontrar, volta correndo para o pai.

O tempo, senhor absoluto de todos os momentos, congelou o corpo de Estilianos, ali, no chão do banheiro. Daremon corre ao telefone para chamar a ambulância. Volta para o corpo do pai e se agacha para abraçá-lo. Um turbilhão de imagens das inúmeras vivências juntos, desfilam como um filme em câmera rápida por sua mente. Põe-se a observar atentamente o rosto daquele que foi quem forjou sua alma para ser como um aço forte. Não via mais um rosto e sim um semblante com linhas suaves. O que impressionava eram os olhos muito abertos. Sentiu que deveria fechá-los lentamente. Ao fazê-lo algo lhe chamou a atenção. Os olhos de Estilianos possuíam um brilho estranho. Ao se aproximar percebeu que o brilho era um reflexo. Uma onda gelada percorreu todo seu corpo arrepiando-o e deixando-o estático por alguns segundos. Na íris de Estilianos estava gravada uma imagem que lhe era muito familiar: o bule de chá! Como uma foto retida por um instantâneo, a imagem do bule era perfeita apesar do tamanho. De súbito uma idéia mórbida passou pela mente de Daremon. Lembrou do que seu pai lhe havia dito em certa ocasião durante suas longas conversas: “Diante do inesperado fantástico, haja com a naturalidade do espírito de uma criança pura e destemida”.

Correu até seu quarto e pegou sua câmera de alta resolução. Colocou a lente de captação microscópica, respirou fundo, e tirou uma seqüência de fotos da íris de seu pai antes que a ambulância chegasse.

6 meses haviam se passados da morte de seu pai. Daremon, agora com 20 anos, morava sozinho, Recusou educadamente reiterados convites de familiares para morar com eles. Estlianos o havia instruído para sobreviver muito bem consigo mesmo caso houvesse necessidade. Algo que sempre ouviu de seu pai foi sobre a importância de conquistar autonomia de vida. “Nunca dependa diretamente de ninguém, meu filho. Isso tira a sua força moral. E força moral é muito mais do que simplesmente moral. É o que constrói escadas na progressão de uma consciência. Indiretamente sempre dependeremos de alguém e alguém dependerá de nós. Um dia você precisará da ajuda de alguém da mesma forma que alguém precisará da sua. Essa interdependência faz parte de um processo natural. Mas saber qual direção tomar não pode ser determinado por uma “autoridade externa”. A autoridade está dentro de você”.

Navegando por essas reflexões, Daremon pensou em retomar a observação da foto que tirara da íris de Estilianos. Desde o triste episódio, não havia tido ânimo para estudar aquele incrível fato: os olhos de seu pai haviam “fotografado” um objeto como última imagem antes de expirar. ”Por que aquele bule?” — se perguntava Daremon.

Ampliou o máximo que pôde a foto que tirara para observar bem os detalhes. Um senso investigativo lhe retoma o espírito. Olhou... olhou bem cada detalhe do bule e... algo lhe chamou a atenção. Notou que próximo àquela imagem do dragão haviam 3 traços verticais lado a lado. De repente um sobressalto! Um estalo em seu abdômem sincronizou com uma claridade mental: eram as 3 portas que seu pai lhe havia dito que surgiriam em sonho após completar 21 anos! Faltavam apenas 2 meses para seu aniversário.
(continua)




terça-feira, julho 17, 2007


O mundo tem o tamanho da minha visão.



Quando criança meu quintal era uma cidadela inexpugnável.Organizei batalhas que duraram séculos nas poucas horas que minha imaginação elástica, teve a permissão da criatividade para superá-la. Não houve mortos nem feridos. Apenas a dádiva da imortalidade em manhãs ensolaradas no pátio de minha casa, ou do meu vasto reino. O céu podia esperar sem pressa. Concedi glórias, aniquilei a soberba de invasores, desfrutei de conquistas, eternizei epopéias.

Hoje o mundo é pequeno. Muito pequeno. Não é mais um quintal.Tem o tamanho do meu quarto. Nesse quarto cabe a Europa, a Ásia, a África... todo longínquo espaço imaginável e inimaginável. Percorri os quatro cantos do mundo... e o meu quarto sempre esteve comigo; dimensionando meus sonhos, fortificando serenamente meus rituais de passagem para a realidade.Como o mundo é pequeno demais! Por mais que eu caminhe, as distâncias se encurtam, o tempo se esvai como neve ao sol.

Não sou pródigo. Apenas um filho que cansou de rejeitar a comida dos porcos e quer voltar pra casa mesmo que descalço. Meu apetite é cronofágico. Consumo a mim mesmo segundo a segundo. Ainda a pouco... ainda é pouco, ainda é tic... ainda é tac.As trilhas causam sulcos profundos na consciência. Trêmulas lembranças são gelatinas servidas em potes de aço. No regaço, no fundo da floresta que há em mim, ainda me resta uma ante-sala guardada a sete chaves; chaves essas perdidas por debaixo de alguma distraída saudade.

Como é minúsculo esse mundo! Como é maiúsculo o mistério que o interpenetra. Abraçá-lo é tarefa para gigantes. Rondas e rondas solares passam sem feriado cósmico. Sem descanso a roda gira e eu a observo sem ser seu servo.Olho para o campo de batalha que ficou para trás e meus olhos pesam como chumbo.O chumbo do sono; do sono que me faz sonhar; do sonho que me torna lúcido ao despertar.

domingo, junho 24, 2007


Tampa do frasco


Um frasco guarda perfume d´alma
Aspiro um éter oco
Como um louco na calma dos odores
a falar com tuas flores
enquanto dormitas em tua pétala macia
Quem diria
É o bem que me fez querer
essa tua lágrima a escorrer
pelos poros que tanto adoro
à tampa do frasco me faz ceder


Leandro Soriano

sexta-feira, junho 22, 2007


O Filho do Brasil



As 24 horas do dia lhe eram totalmente estranhas. Não era muito nem era pouco. Apenas insuficiente por conta do excesso de sonhos. Lá pelas tantas acordava. Pra lá depois de tantas, dormia para esquecer o que lhe deprimia. Seu pai, seu Brasil, era um homenzarrão; um gigante pela própria natureza que Deus lhe havia emprestado para lhe tomar de volta na hora incerta. Seu Brasil era assim um tipo que os psicólogos logo o rotulariam de dicotômico. Oscilava entre o passado naftalínico e o futuro aguardente... dentes lhe eram arejados e os olhos marejados do suor que vinha da alma indigente prescreviam-lhe invisíveis remédios que somente ele conseguiria ingerir.

A parte do corpo que mais utilizava era o cotovelo — e com que desvelo... Com ele seu Brasil perdia a vida e ganhava a morte. Não era um cotovelo qualquer. Não, não senhor. Era um cotovelo de última geração. Todo calejado com o mais resistente efeito de dormência que um cotovelo poderia ter. Os balcões da vida que o digam. Quantos deles se entregaram resignadamente diante desse peso constituído de carne ressecada e ossos porosos a lhes pressionarem a lisa e empossada superfície etílica.

Mas seu Brasil tinha a persistência da desistência. Com a mesma facilidade com que se inflamava na tola e passageira alegria, queimava-se na malandragem feita por tanta mal disfarçada tristeza. Ninguém duvida da capacidade e dos talentos ocultos que habitam o seu Brasil. Quando bem intencionado, dele poderia se extrair muitas insuspeitas riquezas. Seu Brasil mal sabe que carrega em si o destino que tanto pensa saber. Seu Brasil é o pai do futuro de seu filho gerado por uma impaciência atrevida tão devida mais por alienação incultivada do que por uma ignorância herdada.Ah seu Brasil... o tempo acaba só quando termina. E mina aos poucos o pouco que ainda resta do nada que se pensou ter.Filhos de homens como seu Brasil, são gentis com o próprio solo onde pisam por respeito ao calejado que a vida lhes impõe.

Um dia seu Brasil vai morrer. E com ele sua curta memória de uma vida tão curta de importância, que vai ficar na lembrança apenas mais um capítulo da novela que deixou de ver.Ouvir-se-á lá ao longe num Ipiranga imaginário, que o filho daquele otário, o amou com tanta intensidade que na verdade somente o silêncio do mundo o abraçou com o penhor de uma igualdade que nem a mais próspera sociedade um dia já sonhou.E se ao restar só e filho, o que anda carregando o próprio corpo abandonado, lá vai o bravo soldado à luta fingida igual a intenção de um germicida que longe do povão, aperfeiçoa para seu intento, da alma dos coitados, o seu quinhão.

O que se sabe de tudo isso é apenas a questão: alguém salve seu Brasil. Sua saúde pode matá-lo.
Leandro Soriano
e conheça a obra desse fotógrafo que inspirou esse texto.

sexta-feira, junho 08, 2007


O ovo



Uma criança de seus 5 anos, nascida na boa sorte de uma família economicamente mediana, vive feliz no seu mundo feito de brincadeiras e gulousemas. Dorme profundamente a sonhar ansiosa pelo dia de amanhã que, para ela, nunca acabará. Durante o sono, uma voz de timbre amigável, diz-lhe: “Que bom o mundo ser assim não é mesmo? Você dorme, acorda, come o que gosta e depois vai brincar até se cansar. Porque então não continuar dessa forma para sempre?”

A criança acorda com a seguinte idéia na cabeça: “isso mesmo, não vou deixar de ser criança nunca! Ficarei para sempre nessa fase. Não serei um adolescente como meu irmão.”

O tempo passa e chega inevitavelmente a adolescência para essa criança. Uma revolta tida como sem causa pela crítica exterior, o torna inquieto com o mundo e consigo mesmo. E o adolescente lembrando-se da voz que, na sua infância, lhe falou no sonho, decide: “dessa vez não me pegarão; vou manter-me adolescente e ninguém irá alterar isso!”

Mas o tempo, como que dando de ombros à efemeridade dos queixumes humanos, esvazia toda essa utópica pretensão adolescente e remete-lhe direto para a fase pré-adulta, sua juventude.Nessa fase, aquela criança sentindo-se como que sufocada por inúmeras responsabilidades, encolhe-se no seu interior e de lá emite um S.O.S.: “finque sua bandeira da vitalidade e energia, não saia dessa fase!”

Frio como um mármore, lá se vai o tempo indiferente aos ideais da juventude. E com ele a própria juventude. Chega a “idade madura”. Ou, mais dura?Agora o seu diálogo interno diz: “como sei o que é a vida, dosarei todos os meus passos; só irei na boa e assim me manterei, até darei orientações para os imaturos.”

Imponderável como o amanhã, o tempo empurra o “tolo filósofo” para a velhice.Sem ter opção, acorda de madrugada a procura daquela voz que o acompanhou desde criança. A voz emudeceu. Em seu lugar surge um ovo. Um ovo? Sim, um ovo. O tamanho é de dimensões imprecisas. Se quiser vê-lo pequeno, pequeno ele será. Se quiser quase desaparecer próximo a ele, gigante ele se tornará. Não é magia, não é feitiço, não é sobrenatural: é um... ovo.

Ele tem casca. Não uma casca dura. Mas se quiser que seja dura ela o será. A cor da casca é o mistério maior: é incolor; ou melhor: é transparente.

O que tem dentro do ovo? Forçando a visão para além da casca, o moribundo olha fracamente e o que vê o emudece; seca sua garganta; paralisa seus membros. Porque ele vê exatamente o que quer ver. E o que vê o amedronta. Pois o que o amedronta está pronto para sair da casca. Está pronto para nascer.

Ele fecha os olhos. Não quer ver mais um nascimento.

Absorvido em total inconsciência, encolhe-se; dissolve-se.

Um primeiro olhar, um primeiro pensamento reconhecido como tal, diz: “como faço para dormir? Basta fechar os olhos?”

E a criança começa seu aprendizado.

segunda-feira, junho 04, 2007

O anjo podre


Surgiu do nada, como quem nada quer. Vestes de caráter cortado em fatias desiguais. Memória balbuciante sem nítida definição de vivências. Dormia onde o sono lhe concedia apertado recanto. Acordava onde as sombras se retiravam ao aperto solar no rosto. Deuses da vingança requintada administravam seus humores. E os dias na megalópolis triturava-lhe as esperanças com a força de uma rotina. Qualificação oscilava entre mendigo e amnésico de fino trato. Esquecia o que era se alimentar até que o vômito das entranhas vazia, lhe facilitava o arremedo de autoconsciência.

A todos dizia ser um anjo e se punha a tocar sua flauta doce de onde melodias cabalísticas roçavam a vã sensibilidade da platéia que se dignava ouvi-lo.
Ninguém dele se aproximava. Uns tomados pela náusea provocada pela cultura da imortalidade de festim; outros pelo odor fétido que a pureza de sua insanidade como embalagem, lhe era conferida.

Tinha uma cândida atração por crianças. As quais disparavam troças em sua direção e em uníssono gritavam: “olha o anjo podre... olha o anjo podre”. E o impregnado de compaixão sorria clamando com os olhos, um brilho de ingênua sinceridade.

Entre tantas das muitas excentricidades, gostava de andar na chuva com sua inseparável flauta companheira executando melodias estranhamente alegres.
Certa ocasião, no solstício de inverno, foi visto sentado de pernas cruzadas num campo todo coberto de geada olhando para o bosque da periferia.
O bosque — todo ele composto de muitas árvores de cedro (uma raridade cultivada pela colônia libanesa) — oferecia uma possibilidade de efeitos cromáticos, de uma beleza insuperável nessa época do ano. Mas para os efêmeros passageiros desse barco tão volátil chamado vida, isso passava despercebido na maioria das vezes. Quem mais costumava prestar atenção ao fenômeno eram os mendigos e desocupados que perambulavam enregelados a procura de madeira para se aquecerem. Não que estivessem precisamente atentos ao espetáculo que somente aos de coração purgado até a última câmara era desvelado, mas porque o efeito trazia a descoberto galhos retorcidos, sobras e lascas de madeira aproveitáveis como ígneos cobertores.

Exatamente no dia 21 de dezembro postou-se diante do bosque, calmo, com os olhos fitos muito além dos cedros. Nesse dia não tocou na flauta. Era como se o momento que mais aguardava lhe fosse trazer a realização plena de suas mais íntimas esperanças; talvez um portal se abrisse e uma carruagem de luz aguardaria apenas que subisse e assumisse as rédeas de seu destino de fogo; ou, que os cedros ganhassem vida e de árvores passassem instantaneamente a condição de gênios alados prontos para alçarem vôo ao seu comando. Quem naquele instante olhasse para seu rosto, veria um semblante ardendo em vermelhidão resplandecente, lívido; seu olhar agora eram dois horizontes silenciosos; seu coração pulsava ao ritmo de uma tarantela mística si-len-cio-sa-men-te.

Começa o espetáculo. Labaredas lilás-alaranjadas iniciam os primeiros movimentos de um opus que para o “anjo podre” era uma sinfonia sem fim. Fachos prata-azulado faiscavam por entre os galhos finos; uma bola dourada avançava por entre as árvores e crescia a medida que avançava. Exultava e aos pulos gritava: “leva-me, leva-me Pai do fogo... leva-me para casa!”.
Toda essa manifestação atraiu a atenção de inúmeros mendigos da redondeza. Vários se aproximaram. Afinal para quem passa os dias sem nenhuma alteração da mísera rotina, aquele maluco, aquele “anjo podre” mal cheiroso, servia-lhes como um pequeno espetáculo estimulante.
Próximo dali vizinhos abastados em suas mansões fortificadas, incomodados pela pantomima de mais um Zé nada, chamaram a polícia.

De certa distância, os policiais, viram uma pequena multidão de esfarrapados formando um semi-círculo.
Ao chegarem cautelosamente, seus olhos não acreditavam no que viam. Nunca em suas vidas tão miseráveis haviam vivenciado algo tão inusitado.
Todos os mendigos tiravam suas roupas, peça por peça e as jogavam na grama geada que aos poucos avançava para revestir todo o campo e o bosque com sua tonalidade solidão.
A cada passo dado, os policiais sentiam um estranho aquecimento gradativo. Próximo aos mendigos o calor era tanto que tirar a roupa tornava-se um impulso irresistível. E foi o que os policiais fizeram juntando-se aos mendigos desnudos.

Em meio ao pra lá de maravilhoso efeito cromático por entre as copas dos cedros, a vizinhança empolada e indignada com a falta de atitude dos policiais, decidida, se aproximou daquela roda de gente com estranha atitude.
A mesma reação de todos que ali estavam presentes, tomou conta do grupo. O calor aumentava e cachecóis, mantas importadas, chales e bonés eram atirados ao solo por efeito de um calor anormal que a todos afetava.

De costas para todos, sentado em cima de um largo tronco decepado de cedro com pouco menos de um metro de espessura, estava sentado de pernas cruzadas tal qual um yogue, o anjo podre. Totalmente nu, olhava para as próprias mãos. O silêncio absoluto fazia eco aos ouvidos abstraídos dos presentes àquela cena jamais imaginada.

Aos poucos, ruídos de estalos esparsos aumentava de volume a medida que também aumentava o calor. Um raio preciso de 50 metros isolou a área da neve e do frio.
A essa altura os cedros abrasavam-se e abrangente vermelhidão tomou conta de tudo que havia por perto.
Um odor de madeira queimada passando para algo parecido com carne em putrefação, dominava o ar em torno de algumas pessoas. Outras mantinham-se impassíveis. O número das que sentiam náuseas com o odor cada vez mais fétido, aumentava. Começaram a vomitar e seus corpos imediatamente entraram em convulsão. Gritavam alucinados que era o cheiro de podridão daquele “anjo” sujo. Saíram correndo atropelando uns aos outros. O frio abraçou novamente seus corpos expostos a suas estúpidas percepções físicas. Correram trêmulos em ziguezague a procura de abrigo para o frio. Apenas sete restaram daquela turba. Sete e mais nenhum. Mantinham-se ali imóveis, abstraídos, aquecidos, alimentados por um calor protéico.

O que para os outros ardia em suas narinas como fétido, para esses sete elevou seus olfatos a um sândalo orgônico.
De súbito os sete notaram o anjo podre elevar-se em chamas. Labaredas consumiam sua carne; seu corpo desmanchava-se como cera quente até restar somente uma poça escura aquosa.

Não havia mais anjo podre. No seu lugar surge uma bola de luz crescente. Cresceu e cegou aos sete assustados desnudos: 3 mendigos, 3 policiais e 1 abastado.
A cegueira os levou a perda da consciência; a inconsciência os levou a despertar em meio a um comício político onde um empertigado candidato bradava seu projeto social para acabar com mendigos.
Olharam-se e sorriram em silêncio.O frio avançava implacável. Não havia o que temer e nem tremer. Havia uma flauta; havia o bosque.

Leandro Soriano

sábado, maio 19, 2007

A escada.


Todos os dias eram vazios para Reustafá. Não porque fossem de todo ruins, um desprazer. Mas a impecável rotina dos dias de sempre, assim os tornavam para ele. Era como se o dia fosse republicações da mesma notícia com variações mínimas apenas nos termos. Uma repetição automática e pantomímica. Os “bom dias”, os “olás”; as mesmas calçadas por onde caminhava, os semáforos, as pessoas estacionadas nas mesmas esquinas e as que rapidamente avançavam em direção ao consumo das horas.

Reustafá gostava de na hora do almoço, ir até o parque central que ficava próximo ao seu trabalho e lá fazer a sua refeição. Sentava-se no banco diante do lago ladeado por dois pés de crisântemo campestre a lhe fazer camuflada companhia.

Do bornéu inseparável, tirava um tapewear médio onde estava sua aveia; do menor, o yogurt duro. Bastava-lhe. O que queria mesmo era admirar as uniformes crispas da superfície do lago a movimentarem-se ordeiramente como se estivessem atendendo a um invisível chamado. Isso o acalmava e lhe dava confiança.

Após o trabalho, voltava para casa sempre pela rua Voltaire. Uma rua muito arborizada e tranqüila. Essa rua desembocava em uma bifurcação: de um lado uma praça de pequena dimensão e do outro a rua do Portal. Do lado da praça, um pequeno boulevard conduzia até uma longa e larga escadaria margeada por um bem cuidado jardim. Reustafá contou 30 degraus. A sensação era que parecia ter mais de 1000. Nunca os escalou. Sempre que por ali passava propositadamente, parava diante da escadaria e admirava sua estranha imponência harmoniosa.

Olhando para cima divisava um banco de madeira com ripas horizontais todo branco e solitário na maioria das vezes. Sentia uma enorme vontade de subir a escadaria e sentar-se àquele banco. Mas um sentimento de inexplicável constrangimento, detinha-o.
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Observar o banco alaranjar-se ao poente era uma experiência indefinível por palavras. Isso o embevecia. Em algumas oportunidades, essa cena era valorizada ainda mais pelo som distante de um oboé executando uma música que identificava como sendo Bnei Heichala.
Bnei... Bnei... ecoava em sua interioridade apaziguada do mundo que lhe era tão distante.
Um grupo de crianças em gritaria passou correndo por ele e o trouxe de volta a realidade — ou tirou-lhe dela.

Morava a poucas quadras dali. Sua casa era estilo grega toda branca e abobadada. Rotineiramente ao chegar em casa tomava um banho morno; vestia uma roupa de linho leve e preparava mais um prato de aveia com pão preto. Isso lhe supria satisfatoriamente. Sentava-se na varanda com piso de tábuas de madeira com uma xícara de chá de sálvia e aquietando mente e coração, ouvia ao longe o misterioso som do oboé a melodiar em ondas irresistíveis por oceanos da imaginação.

Era feriado nacional. O bairro estava vazio. Era como se quase todos os moradores tivessem saído para viajar. Sem ter para onde ir a não ser para onde seus enfastiados sentimentos o conduzisse, Reustafá pôs-se a caminhar pelas vielas do bairro até instintivamente se deparar com a escadaria. Diante dela conduziu o olhar até o banco... lá no topo. Eram 17h40 e o céu como que em oração, convidou os mais belos matizes a formarem gradientes em mesclas intangíveis entre o dourado e o préter do mais sutil violeta... comungando com seu mais solitário observador ausente de sua própria solidão. Bnei... Bnei... a melodia a soar e sua alma gigante mal cabia em seu frágil corpo.

Sem dar conta de si, lentamente deu o primeiro passo, e o segundo, e o terceiro... até parar no décimo terceiro bem diante da residência onde morava o doce som do oboé.

Como uma reverência, a melodia saiu a cumprimentá-lo como que incentivando-o a continuar a subida. E assim o fez.
Nunca olhou para trás. Seus passos grudavam nos degraus como se tivessem ímãs. Era como se fossem os degraus a puxar seus pés a dar os próximos passos.

Uma brisa suave e cálida tal qual par de mãos, puxava-o com ânimo; uma silenciosa revoada de pássaros cruzando em diagonal sua escalada, respeitou as frases do oboé.

Sem cansaço chegou ao topo. Instintivamente contou trinta e três degraus e mais um em fase terminal de construção. Olhou à sua direita e lá estava o banco alvo a reluzir a esplendorosa cromática do poente solar.
Caminhou e sentou-se no banco. À sua frente descortinou-se um vasto oceano dourado; um horizonte tão retilíneo quanto seus pensamentos. Tudo que observava poderia ser descrito. Somente a paz que sentia era indescritível.
Um sorriso de Monalisa tomou conta de seu semblante.

A noite avançava e com ela o fim do feriado. Os moradores do bairro retornavam e com eles a algazarra de suas viagens preenchiam de “nada” as vielas ziguezaguiantes.

De manhã cedo um grupo de funcionários encarregados da faxina local, depararam-se com um corpo enregelado sentado no alvo banco segurando em suas mãos um oboé.

— Pobre Reustafá... era um músico tão talentoso que desperdiçou sua vida na tristeza de sua solidão — comentavam os funcionários. O que será que veio fazer aqui, sentado a noite toda diante desse terreno baldio?

quinta-feira, maio 03, 2007

O filme vai começar


A memória ausente levou consigo o quinhão das sólidas referências de consciência que compõe a celebração à perspectiva, claro que não uma mera perspectiva, mas um ponto de fuga do ordinário; do fugaz; padronização. Isso tudo estava desativado.

Um anfiteatro para projeção cinematográfica foi o que restou à sua frente. Tão desativado quanto sua memória. Poltronas empoeiradas recobertas com lençóis amarelados; andorinhas revoavam crisnando em defesa de seus ninhos; frestas permitiam luminosos raios bíblicos; o cheiro predominante era de nostalgia.

Parado ali no corredor, olhava o vazio ambiente como quem olha para um vale do alto de uma cadeia de montanhas. A tela branca apresentava manchas esparsas. Caminhou em direção às poltronas dianteiras. Escolheu a ermo a terceira poltrona da oitava fileira; sentou-se, ou, deixou o corpo cair no estofado encaroçado e sujo levantando um ballet de poeira preguiçosa.
Fixou os olhos na tela como quem espera o apagar das luzes mas o que se apagou lentamente foi sua atenção de vigília. Um sono pesado e bem vindo o carregou dali para um sonho vívido; desses que não parecem sonhos, de tão real. Diante de sua tela mental ou seja o que for, desenrolou-se uma cena típica de uma época medieval. Uma taverna de aspecto abandonado à beira de uma estrada enlameada às cinco horas da tarde.
Aproximou-se à porta como se fosse um freqüentador regular e já ia empurrando-a; hesitou e lentamente a abriu. Ninguém presente. Encostou a mão na porta e sentiu o ambiente antes de adentrar. No recinto em penumbra divisou oito mesas muito rústicas cobertas com panos velhos e sujos. Somente uma delas estava em melhor condição. Estava limpa com pratos e talheres postos. Havia uma talha e uma caneca de argila verde. Supôs que na talha deveria haver vinho.

Sentou-se. Apanhou a talha e sentiu o peso do líquido. Não hesitou em encher a caneca. Sim, um vinho, densamente tinto.
Bebericou bem devagar para sentir o aroma e o frutado do mosto. O carácter do precioso, se lhe apresentou às portas do divino. Tudo ao redor lhe parecia arranjado para proporcionar bem estar.A cada gole fechava os olhos e se lhe abriam visões como de multidões em alvoroçado falatório; música rápida e instigante fustigava-lhe os ouvidos.

Degustava um gole do precioso, enquanto sentia que o local rodopiava à sua volta como se estivesse em um carrousel. De repente tudo escureceu.Só negrume o envolvia. Sentiu medo; muito medo. Pior, não sentia o chão. Silêncio total. De sobressalto faltou-lhe o ar quando um facho de luz o atingiu no peito revelando tudo que havia a sua volta. E o que viu assombrou-lhe completamente: uma platéia atenta olhava-o como quem espera uma atitude de cena. Ergueu-se sabe Deus como, e olhando para a platéia soltou: “o que vocês querem?” Logo percebeu que essa frase ecoou apenas em sua mente. O público continuava impassível.

Então entendeu que sua realidade não ultrapassava a dimensão de uma tela–— Estou preso a uma tela!... tela... cela... Tentou pular para fora dali mas o que conseguia era um avanço apenas virtual. Percebendo a inutilidade de qualquer esforço para escapar, resignou-se.

Uma voz em off lhe disse: não se canse à toa apenas siga o script; distraia-os; o filme já vai começar — mais uma vez.

quarta-feira, abril 25, 2007

Entre o sentir


Assim é a dor
Não a dor que dói
Mas a que corrói
No silêncio da consciência

Uma presciência
Da insignificância de todo saber
Mesmo um anjo saberia
Como é cega a tristeza
E eu entenderia a riqueza
À revelia do pouco
Que há de ser

Toda manhã germina
Cresce em esperança
Até o entardecer
Vela meu sono
Como se fosse o dono
Daquilo que não fui capaz

Imerso
Faço-me compartilhar
Ao lado dos que são
Sub-reptícios
Transeuntes do precipício
À borda do desvão

Tão tarde é tão nada
E a luz enfada
Por sentir que entre o sentir
O que se entendeu
Permanece ausente
E é como se sente
Mesmo na ausência da razão

sexta-feira, abril 20, 2007

Shangrilá


A distância entre nós
São nós desatados
Feito dois ataviados
Pobres coitados
Aos olhos de um querubim

Oferto-te uma missa
Partindo da premissa
Que és um anjo
Próximo a mim

Tão cá como lá
És uma cantata
Luz premiata
Minha fuga de Bach

Olhos de sonho
Planeta tristonho
Saudade estelar

Quimeras,
Quem me dera,
Fosse contigo
Pro umbigo do mundo
Viver em Shangrilá

Mas a hora é chegada
Pra quem já partiu
A caminho deixou
Pra quem ainda ficou
O sonho a seguir

quinta-feira, março 29, 2007

Ser ou selo

Memórias endereços
Momentos vividos
Alguns perdidos
Noutros residência

Leva-me, vida,
Correspondência
A essa abstinência
Na espera do meu viver

Bato-me à porta
E o que me importa
É se estou para me atender

Avançado da hora
Quase indo embora
Chega-me a missiva

Nela, como estopim,
acende-me o silêncio
Outrora guardado
Agora lembrado

Sou o que era
Resto de era
A bem da verdade
Nem sei mais de mim

Eis que me acordo
Ao último zelo
Não é sonho, posto ciente
Sei-me... é um caminho
Origem do selo

sexta-feira, março 16, 2007

A história de NInguém.


Tarde chuvosa de domingo e Ninguém nasceu. Era um desses domingo-feriados que por obra e graça do calendário, anulou o que poderia ter sido um fim de semana prolongado. Mas, as atenções da família estavam todas voltadas para Ninguém — se é que se pode chamar de família, uma mãe “tropeira”, uma avó de 87 anos cega e esclerosada e um cão vira-lata de três patas; de uma família assim, o difícil é que possa advir algum fenômeno chamado atenção. O pai, nunca tomou conhecimento de Ninguém. E Ninguém jamais o teria tão perto como um filho ao alcance das mãos.

Ninguém era silencioso; quase não se escutava seu choro. Se alimentava mais por distração da mãe do que por um ato de amor materno. Isso Ninguém desde cedo saberia seu significado.
Segunda-feira a mãe teve alta. Foi para casa sozinha levando — meio que por obrigação — Ninguém a tira-colo. Pegou um ônibus depois de esperar uns 25 minutos mais ou menos debaixo de forte calor. Ninguém, mesmo diante dessa situação, não deixou de mergulhar em profundo sono.

Diante da calamitosa situação familiar, Ninguém nunca se deixou abater e cheio do destemor e um forte sonho de ser alguém, traçava planos, para atingir seu objetivo.
Ninguém chegou à adolescência com a sorte dos renitentes. O imponderável do destino afeiçoando-se por Ninguém, o conduziu às portas de uma nova família que mediante pura empatia, o adotou garantindo a Ninguém tudo aquilo que a decência possa garantir. A mãe, sentindo um alívio, desfez-se daquele “incômodo” que havia invadido sua tão vazia existência (só ela não sabia disso)

O tempo passou e Ninguém tornou-se o que esperava de si próprio: realizado e feliz.Tudo o que Ninguém mais queria era constituir uma família. E Ninguém conseguiu.Teve um, dois, três filhos; dois meninos e uma menina. Ninguém procurou ser para a família o que a família não havia sido para Ninguém.

Então sobreveio o golpe que ninguém esperava. Ao chegar em casa após um estressante dia de trabalho, Ninguém encontra sua tão amada esposa sendo amada por um ninguém qualquer. Chocado, atônito, Ninguém ficou parado sem saber o que fazer. Numa explosão sanguínea, berrou para os dois saírem de sua casa que havia construído com muito sacrifício.
Desse dia em diante, Ninguém nunca mais quis saber de alguém. Dedicou-se de corpo e alma aos filhos.Os filhos cresceram, tornaram-se adultos, casaram e foram ter suas vidas. Ninguém ficou só, consigo mesmo.

Na velhice, Ninguém acreditou que fez o melhor que pode. A noite, em sua varanda, olhando as estrelas, Ninguém pensou em Deus.E esse pensar fez Ninguém acreditar que a vida que o trouxera, agora vinha lhe buscar.
O fim que Ninguém esperava chegou sem se atrasar. Não houve dor, não houve agonia; o que ficou para sempre foi a passagem de Ninguém, que o tempo esqueceu sem regatear.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Vernissage


Estava ali sentindo-me quase sufocado. Meu olhar borrado envidraçado não conhecia fixação de foco. Valia-me do surreal para conectar-me à realidade permeável pelo improvável. O que mais me atormentava eram as ondas de consciência de boa resolução, que como maré, escamoteavam no seu vai e vem as claras respostas para tudo em meio ao lixo despejado pelo turismo mental. “Como pude chegar a esse ponto?” — repensava continuamente... na mente contínua... e continua contínua mente... Meu equilíbrio advinha sabe de onde? De bocejos que estremeciam minhas estranhas entranhas devolvendo-me re-articulação perceptiva. Uma dádiva, poderiam dizer alguns introspectivos ignorantes com suas análises de fôlego curto. Que sabem eles da luminosidade turva? Da conservante oleosidade sutil? Pra lá de enfadada estava minha aquosa inteligência, tão plena, tão segura de traçar linhas tão eqüidistantes sem sair do lugar... lugar comum... comum... comunguei... excomunguei... Mais um bocejo e arremesso-me do desespero ao re-equilíbrio. Mais uma vez. Quanto tempo irei suportar esse tampão existencial? Que absurdo! ... não há voz interna! Quando isso observo torno-me servo... do quê? Pra quê? Não... outro bocejo não!

Quero dormir. Ordeno-me: Durma! Meus olhos não se fecham. Olha só... não tenho olhos! Só agora pude ver isso de tão perto que estou de algum desfecho. Fecho as mãos e liquidificam-se. Mexo-me e borbulho-me. Não há solução. Já sou solução. Uma combinação de elementos mentais que somente tornar-se-ão “coisas”, figuras, objetos, paisagens, oceanos, montanhas, céus, homens, crianças, lagartixas... lagartixas... bocejos... ensejos... que seja.

Espere!... espere!... algo retira-me. Gira-me... girou-me! Destampei-me! Respinguei-me de alegria! Afinal, a vida trouxe à existência o papel como suporte para minha manifestação. É festa! Vim ao mundo! Fiz-me luz e sombras, proporção e perspectiva.
Meu sangue nankin agora toma corpo à vontade sob a pena de Marta, umedecida.
Minha fome procura um ponto de fuga. Encontrei-me no início de um esboço de alguma obra! Minha existência não é vã. Meu traçado aponta infinitos inflamados pelo furor do escape ao limite imposto pela moldura tão bela quanto inocente. Fazem me crer que sou apenas um quadro na sala. Nada mais do que isso.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

A vida de Brian


4 pequenos irmãos, 4 destinos. Apenas um teve uma guinada radical na vida; um salto quântico. Moravam ao relento com a mãe cuidadosa até onde o limite da decência permitia. Um dia a decência, já moribunda, terminou em uma tarde trágica. Uma blitz varreu três indefesos corpos que rolaram para o terreno baldio, distorcidos e desfigurados pela ação de uma auto-satisfação regurgitada do prazer saciado. Mas como a vida reserva surpresas, o sobrevivente escondeu-se do massacre por puro instinto (ou sorte dos instintivos). Passada a tormenta, boas almas aproximaram-se do pequeno assustado, desamparado e solitário persistente. A mãe, o vento a levou da mesma forma que a trouxera. Mãos carinhosas tentavam alimentá-lo, mas o medo alimentava a resistência (como é difícil ajudar a quem nunca foi ajudado). Cansado pelo vazio existencial, cedeu à fome de sobrevivência. Acolhido, tratado, banho tomado, espírito reacendido pela esperança, lá estava ele sentindo-se alguém. Como não poderia me sentir surpreso ao chegar em casa depois de um estressante dia de trabalho e dar de cara com o mais novo componente da família, ali sentado com um olhar que aguardava o sinal verde para a dignidade? Sem forças pra dizer um não, acabei permitindo que ficasse. “Isso é coisa da minha irmã”, pensei. Aproximava-se da gente meio ressabiado. O nome que a princípio haviam escolhido para ele foi Rayan pelo fato de seu difícil resgate lembrar o filme. Só faltava registrar como Ryan da Silva. Nada contra os Silva é claro, pois sou um deles. A sonoridade de Ryan cedeu a Brian e assim ficou. Cresceu, encorpou-se, bigode e pêlo por todo corpo o tornaram a atração das gatinhas do pedaço. Passados bons anos, hoje já um adulto, faz parte das fotos do álbum de família com a mesma naturalidade de um membro como se fosse consanguíneo. Olho pra ele e vejo-o sempre ao meu lado — fiel companheiro a me olhar com um olhar de sincero agradecimento pela vida digna e feliz que possui. Tudo bem que está até meio gordinho. Também, não para de comer ração o dia inteiro. Tenho até que esconder desse gato espertalhão com seu inconfundível charme viralatês que tanto amo.

sábado, fevereiro 17, 2007

Deus resiste?


Não. Deus não resiste. Após eônicas pesquisas, reflexões monásticas, posturas yogues, elocubrações xamânicas, debates sócio/político/filosóficos e escaneamentos científicos, chegou-se a retumbante descoberta da não resistência de Deus. Na verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade, quem resiste é o homem. Esse sim é o verdadeiro e único resistente no indecifrável infinito universo. Ele fez-se a si mesmo semelhante a si próprio. Diante de tanto sofrimento e corrupção como pode um Deus resistir? Não pode mesmo. Mas o homem, esse sim, resiste. E a prova de sua resistência são seus atos e tudo que ele cria a sua volta. Mas os séculos passarão e eu, um passarinho na mão mais do que dois voando, me valerei de máximas e mínimas tais quais “a soma de que tudo sei é que nada sei”. Não sei quanto tempo resistirei mas uma coisa é certa: assim que eu deixar de resistir será como se Deus nunca resistisse.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Indo

Ninguém nasce feliz ou triste
Nasce bilhete de ida
Somente
Nem fica pra semente
Parte ao destino
Que desconhece
Nem adianta uma prece
Não tem volta
Mais do que a partida
É abduzida
Com o dedo em riste
Na contra-mão
A mesma direção
Que um dia
Deixei
De me seguir

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Saturno


Não é alvo o que procuro
Mas o artefato que de fato
Disparado acerta-me
Em movimento
No momento que a mira inconvertida
Disfarçada de algodão
Descansa ao lado insuspeito
Outrora um sim
Outrora um não

Dou folga d´alma
à alma que não tenho
sou o disfarce do vazio
aparente como um ser pleno

Sobre tudo nada sei
Quando me pergunto por quê
Desenho uma resposta em preto e branco
no arco-íris que bate à minha porta surda

Dói-me a razão
Vazão entre eu e a vacuidade
A mesma que me acompanha
Vã e descompassada

Já é tarde e a vida serena
tem até pena
da vida que se esgotou

No céu, ataviado — pobre coitado —
um rastro — é Saturno —
o mesmo que seguindo-me
meus passos não acompanhou

sábado, janeiro 06, 2007

Meus “is”

Próximo de terminar a tinta
Assim é a vida a escrever suas linhas
Marcas deixadas como últimas palavras-borrões
pressionadas e lidas pela intuição

Meus olhos, como dois balões,
flutuam por entre manchas desprezadas
— meras falhas —
de insuspeitada beleza artística
Resgatando à alma em silencioso motim,
a nobreza da morte em vida de não ser o fim

Ainda que tente — tal qual lugar-tenente —
me falta a voz de comando ao exército de tinta que corre como sangue
Exangue tenho uma carta, não na mão,
mas no coração
onde molho a ponta de minha pena invisível
Com ela escrevo o que me atrevo
ser a carta que me lembre o que há em mim

Mais tarde quando já não haverá mais tempo
olharei por entrelinhas tortas
perceberei que todas as extraviadas palavras
não mais serão do que os pingos nos meus “is”