segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Vernissage


Estava ali sentindo-me quase sufocado. Meu olhar borrado envidraçado não conhecia fixação de foco. Valia-me do surreal para conectar-me à realidade permeável pelo improvável. O que mais me atormentava eram as ondas de consciência de boa resolução, que como maré, escamoteavam no seu vai e vem as claras respostas para tudo em meio ao lixo despejado pelo turismo mental. “Como pude chegar a esse ponto?” — repensava continuamente... na mente contínua... e continua contínua mente... Meu equilíbrio advinha sabe de onde? De bocejos que estremeciam minhas estranhas entranhas devolvendo-me re-articulação perceptiva. Uma dádiva, poderiam dizer alguns introspectivos ignorantes com suas análises de fôlego curto. Que sabem eles da luminosidade turva? Da conservante oleosidade sutil? Pra lá de enfadada estava minha aquosa inteligência, tão plena, tão segura de traçar linhas tão eqüidistantes sem sair do lugar... lugar comum... comum... comunguei... excomunguei... Mais um bocejo e arremesso-me do desespero ao re-equilíbrio. Mais uma vez. Quanto tempo irei suportar esse tampão existencial? Que absurdo! ... não há voz interna! Quando isso observo torno-me servo... do quê? Pra quê? Não... outro bocejo não!

Quero dormir. Ordeno-me: Durma! Meus olhos não se fecham. Olha só... não tenho olhos! Só agora pude ver isso de tão perto que estou de algum desfecho. Fecho as mãos e liquidificam-se. Mexo-me e borbulho-me. Não há solução. Já sou solução. Uma combinação de elementos mentais que somente tornar-se-ão “coisas”, figuras, objetos, paisagens, oceanos, montanhas, céus, homens, crianças, lagartixas... lagartixas... bocejos... ensejos... que seja.

Espere!... espere!... algo retira-me. Gira-me... girou-me! Destampei-me! Respinguei-me de alegria! Afinal, a vida trouxe à existência o papel como suporte para minha manifestação. É festa! Vim ao mundo! Fiz-me luz e sombras, proporção e perspectiva.
Meu sangue nankin agora toma corpo à vontade sob a pena de Marta, umedecida.
Minha fome procura um ponto de fuga. Encontrei-me no início de um esboço de alguma obra! Minha existência não é vã. Meu traçado aponta infinitos inflamados pelo furor do escape ao limite imposto pela moldura tão bela quanto inocente. Fazem me crer que sou apenas um quadro na sala. Nada mais do que isso.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

A vida de Brian


4 pequenos irmãos, 4 destinos. Apenas um teve uma guinada radical na vida; um salto quântico. Moravam ao relento com a mãe cuidadosa até onde o limite da decência permitia. Um dia a decência, já moribunda, terminou em uma tarde trágica. Uma blitz varreu três indefesos corpos que rolaram para o terreno baldio, distorcidos e desfigurados pela ação de uma auto-satisfação regurgitada do prazer saciado. Mas como a vida reserva surpresas, o sobrevivente escondeu-se do massacre por puro instinto (ou sorte dos instintivos). Passada a tormenta, boas almas aproximaram-se do pequeno assustado, desamparado e solitário persistente. A mãe, o vento a levou da mesma forma que a trouxera. Mãos carinhosas tentavam alimentá-lo, mas o medo alimentava a resistência (como é difícil ajudar a quem nunca foi ajudado). Cansado pelo vazio existencial, cedeu à fome de sobrevivência. Acolhido, tratado, banho tomado, espírito reacendido pela esperança, lá estava ele sentindo-se alguém. Como não poderia me sentir surpreso ao chegar em casa depois de um estressante dia de trabalho e dar de cara com o mais novo componente da família, ali sentado com um olhar que aguardava o sinal verde para a dignidade? Sem forças pra dizer um não, acabei permitindo que ficasse. “Isso é coisa da minha irmã”, pensei. Aproximava-se da gente meio ressabiado. O nome que a princípio haviam escolhido para ele foi Rayan pelo fato de seu difícil resgate lembrar o filme. Só faltava registrar como Ryan da Silva. Nada contra os Silva é claro, pois sou um deles. A sonoridade de Ryan cedeu a Brian e assim ficou. Cresceu, encorpou-se, bigode e pêlo por todo corpo o tornaram a atração das gatinhas do pedaço. Passados bons anos, hoje já um adulto, faz parte das fotos do álbum de família com a mesma naturalidade de um membro como se fosse consanguíneo. Olho pra ele e vejo-o sempre ao meu lado — fiel companheiro a me olhar com um olhar de sincero agradecimento pela vida digna e feliz que possui. Tudo bem que está até meio gordinho. Também, não para de comer ração o dia inteiro. Tenho até que esconder desse gato espertalhão com seu inconfundível charme viralatês que tanto amo.

sábado, fevereiro 17, 2007

Deus resiste?


Não. Deus não resiste. Após eônicas pesquisas, reflexões monásticas, posturas yogues, elocubrações xamânicas, debates sócio/político/filosóficos e escaneamentos científicos, chegou-se a retumbante descoberta da não resistência de Deus. Na verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade, quem resiste é o homem. Esse sim é o verdadeiro e único resistente no indecifrável infinito universo. Ele fez-se a si mesmo semelhante a si próprio. Diante de tanto sofrimento e corrupção como pode um Deus resistir? Não pode mesmo. Mas o homem, esse sim, resiste. E a prova de sua resistência são seus atos e tudo que ele cria a sua volta. Mas os séculos passarão e eu, um passarinho na mão mais do que dois voando, me valerei de máximas e mínimas tais quais “a soma de que tudo sei é que nada sei”. Não sei quanto tempo resistirei mas uma coisa é certa: assim que eu deixar de resistir será como se Deus nunca resistisse.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Indo

Ninguém nasce feliz ou triste
Nasce bilhete de ida
Somente
Nem fica pra semente
Parte ao destino
Que desconhece
Nem adianta uma prece
Não tem volta
Mais do que a partida
É abduzida
Com o dedo em riste
Na contra-mão
A mesma direção
Que um dia
Deixei
De me seguir

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Saturno


Não é alvo o que procuro
Mas o artefato que de fato
Disparado acerta-me
Em movimento
No momento que a mira inconvertida
Disfarçada de algodão
Descansa ao lado insuspeito
Outrora um sim
Outrora um não

Dou folga d´alma
à alma que não tenho
sou o disfarce do vazio
aparente como um ser pleno

Sobre tudo nada sei
Quando me pergunto por quê
Desenho uma resposta em preto e branco
no arco-íris que bate à minha porta surda

Dói-me a razão
Vazão entre eu e a vacuidade
A mesma que me acompanha
Vã e descompassada

Já é tarde e a vida serena
tem até pena
da vida que se esgotou

No céu, ataviado — pobre coitado —
um rastro — é Saturno —
o mesmo que seguindo-me
meus passos não acompanhou