domingo, junho 24, 2007


Tampa do frasco


Um frasco guarda perfume d´alma
Aspiro um éter oco
Como um louco na calma dos odores
a falar com tuas flores
enquanto dormitas em tua pétala macia
Quem diria
É o bem que me fez querer
essa tua lágrima a escorrer
pelos poros que tanto adoro
à tampa do frasco me faz ceder


Leandro Soriano

sexta-feira, junho 22, 2007


O Filho do Brasil



As 24 horas do dia lhe eram totalmente estranhas. Não era muito nem era pouco. Apenas insuficiente por conta do excesso de sonhos. Lá pelas tantas acordava. Pra lá depois de tantas, dormia para esquecer o que lhe deprimia. Seu pai, seu Brasil, era um homenzarrão; um gigante pela própria natureza que Deus lhe havia emprestado para lhe tomar de volta na hora incerta. Seu Brasil era assim um tipo que os psicólogos logo o rotulariam de dicotômico. Oscilava entre o passado naftalínico e o futuro aguardente... dentes lhe eram arejados e os olhos marejados do suor que vinha da alma indigente prescreviam-lhe invisíveis remédios que somente ele conseguiria ingerir.

A parte do corpo que mais utilizava era o cotovelo — e com que desvelo... Com ele seu Brasil perdia a vida e ganhava a morte. Não era um cotovelo qualquer. Não, não senhor. Era um cotovelo de última geração. Todo calejado com o mais resistente efeito de dormência que um cotovelo poderia ter. Os balcões da vida que o digam. Quantos deles se entregaram resignadamente diante desse peso constituído de carne ressecada e ossos porosos a lhes pressionarem a lisa e empossada superfície etílica.

Mas seu Brasil tinha a persistência da desistência. Com a mesma facilidade com que se inflamava na tola e passageira alegria, queimava-se na malandragem feita por tanta mal disfarçada tristeza. Ninguém duvida da capacidade e dos talentos ocultos que habitam o seu Brasil. Quando bem intencionado, dele poderia se extrair muitas insuspeitas riquezas. Seu Brasil mal sabe que carrega em si o destino que tanto pensa saber. Seu Brasil é o pai do futuro de seu filho gerado por uma impaciência atrevida tão devida mais por alienação incultivada do que por uma ignorância herdada.Ah seu Brasil... o tempo acaba só quando termina. E mina aos poucos o pouco que ainda resta do nada que se pensou ter.Filhos de homens como seu Brasil, são gentis com o próprio solo onde pisam por respeito ao calejado que a vida lhes impõe.

Um dia seu Brasil vai morrer. E com ele sua curta memória de uma vida tão curta de importância, que vai ficar na lembrança apenas mais um capítulo da novela que deixou de ver.Ouvir-se-á lá ao longe num Ipiranga imaginário, que o filho daquele otário, o amou com tanta intensidade que na verdade somente o silêncio do mundo o abraçou com o penhor de uma igualdade que nem a mais próspera sociedade um dia já sonhou.E se ao restar só e filho, o que anda carregando o próprio corpo abandonado, lá vai o bravo soldado à luta fingida igual a intenção de um germicida que longe do povão, aperfeiçoa para seu intento, da alma dos coitados, o seu quinhão.

O que se sabe de tudo isso é apenas a questão: alguém salve seu Brasil. Sua saúde pode matá-lo.
Leandro Soriano
e conheça a obra desse fotógrafo que inspirou esse texto.

sexta-feira, junho 08, 2007


O ovo



Uma criança de seus 5 anos, nascida na boa sorte de uma família economicamente mediana, vive feliz no seu mundo feito de brincadeiras e gulousemas. Dorme profundamente a sonhar ansiosa pelo dia de amanhã que, para ela, nunca acabará. Durante o sono, uma voz de timbre amigável, diz-lhe: “Que bom o mundo ser assim não é mesmo? Você dorme, acorda, come o que gosta e depois vai brincar até se cansar. Porque então não continuar dessa forma para sempre?”

A criança acorda com a seguinte idéia na cabeça: “isso mesmo, não vou deixar de ser criança nunca! Ficarei para sempre nessa fase. Não serei um adolescente como meu irmão.”

O tempo passa e chega inevitavelmente a adolescência para essa criança. Uma revolta tida como sem causa pela crítica exterior, o torna inquieto com o mundo e consigo mesmo. E o adolescente lembrando-se da voz que, na sua infância, lhe falou no sonho, decide: “dessa vez não me pegarão; vou manter-me adolescente e ninguém irá alterar isso!”

Mas o tempo, como que dando de ombros à efemeridade dos queixumes humanos, esvazia toda essa utópica pretensão adolescente e remete-lhe direto para a fase pré-adulta, sua juventude.Nessa fase, aquela criança sentindo-se como que sufocada por inúmeras responsabilidades, encolhe-se no seu interior e de lá emite um S.O.S.: “finque sua bandeira da vitalidade e energia, não saia dessa fase!”

Frio como um mármore, lá se vai o tempo indiferente aos ideais da juventude. E com ele a própria juventude. Chega a “idade madura”. Ou, mais dura?Agora o seu diálogo interno diz: “como sei o que é a vida, dosarei todos os meus passos; só irei na boa e assim me manterei, até darei orientações para os imaturos.”

Imponderável como o amanhã, o tempo empurra o “tolo filósofo” para a velhice.Sem ter opção, acorda de madrugada a procura daquela voz que o acompanhou desde criança. A voz emudeceu. Em seu lugar surge um ovo. Um ovo? Sim, um ovo. O tamanho é de dimensões imprecisas. Se quiser vê-lo pequeno, pequeno ele será. Se quiser quase desaparecer próximo a ele, gigante ele se tornará. Não é magia, não é feitiço, não é sobrenatural: é um... ovo.

Ele tem casca. Não uma casca dura. Mas se quiser que seja dura ela o será. A cor da casca é o mistério maior: é incolor; ou melhor: é transparente.

O que tem dentro do ovo? Forçando a visão para além da casca, o moribundo olha fracamente e o que vê o emudece; seca sua garganta; paralisa seus membros. Porque ele vê exatamente o que quer ver. E o que vê o amedronta. Pois o que o amedronta está pronto para sair da casca. Está pronto para nascer.

Ele fecha os olhos. Não quer ver mais um nascimento.

Absorvido em total inconsciência, encolhe-se; dissolve-se.

Um primeiro olhar, um primeiro pensamento reconhecido como tal, diz: “como faço para dormir? Basta fechar os olhos?”

E a criança começa seu aprendizado.

segunda-feira, junho 04, 2007

O anjo podre


Surgiu do nada, como quem nada quer. Vestes de caráter cortado em fatias desiguais. Memória balbuciante sem nítida definição de vivências. Dormia onde o sono lhe concedia apertado recanto. Acordava onde as sombras se retiravam ao aperto solar no rosto. Deuses da vingança requintada administravam seus humores. E os dias na megalópolis triturava-lhe as esperanças com a força de uma rotina. Qualificação oscilava entre mendigo e amnésico de fino trato. Esquecia o que era se alimentar até que o vômito das entranhas vazia, lhe facilitava o arremedo de autoconsciência.

A todos dizia ser um anjo e se punha a tocar sua flauta doce de onde melodias cabalísticas roçavam a vã sensibilidade da platéia que se dignava ouvi-lo.
Ninguém dele se aproximava. Uns tomados pela náusea provocada pela cultura da imortalidade de festim; outros pelo odor fétido que a pureza de sua insanidade como embalagem, lhe era conferida.

Tinha uma cândida atração por crianças. As quais disparavam troças em sua direção e em uníssono gritavam: “olha o anjo podre... olha o anjo podre”. E o impregnado de compaixão sorria clamando com os olhos, um brilho de ingênua sinceridade.

Entre tantas das muitas excentricidades, gostava de andar na chuva com sua inseparável flauta companheira executando melodias estranhamente alegres.
Certa ocasião, no solstício de inverno, foi visto sentado de pernas cruzadas num campo todo coberto de geada olhando para o bosque da periferia.
O bosque — todo ele composto de muitas árvores de cedro (uma raridade cultivada pela colônia libanesa) — oferecia uma possibilidade de efeitos cromáticos, de uma beleza insuperável nessa época do ano. Mas para os efêmeros passageiros desse barco tão volátil chamado vida, isso passava despercebido na maioria das vezes. Quem mais costumava prestar atenção ao fenômeno eram os mendigos e desocupados que perambulavam enregelados a procura de madeira para se aquecerem. Não que estivessem precisamente atentos ao espetáculo que somente aos de coração purgado até a última câmara era desvelado, mas porque o efeito trazia a descoberto galhos retorcidos, sobras e lascas de madeira aproveitáveis como ígneos cobertores.

Exatamente no dia 21 de dezembro postou-se diante do bosque, calmo, com os olhos fitos muito além dos cedros. Nesse dia não tocou na flauta. Era como se o momento que mais aguardava lhe fosse trazer a realização plena de suas mais íntimas esperanças; talvez um portal se abrisse e uma carruagem de luz aguardaria apenas que subisse e assumisse as rédeas de seu destino de fogo; ou, que os cedros ganhassem vida e de árvores passassem instantaneamente a condição de gênios alados prontos para alçarem vôo ao seu comando. Quem naquele instante olhasse para seu rosto, veria um semblante ardendo em vermelhidão resplandecente, lívido; seu olhar agora eram dois horizontes silenciosos; seu coração pulsava ao ritmo de uma tarantela mística si-len-cio-sa-men-te.

Começa o espetáculo. Labaredas lilás-alaranjadas iniciam os primeiros movimentos de um opus que para o “anjo podre” era uma sinfonia sem fim. Fachos prata-azulado faiscavam por entre os galhos finos; uma bola dourada avançava por entre as árvores e crescia a medida que avançava. Exultava e aos pulos gritava: “leva-me, leva-me Pai do fogo... leva-me para casa!”.
Toda essa manifestação atraiu a atenção de inúmeros mendigos da redondeza. Vários se aproximaram. Afinal para quem passa os dias sem nenhuma alteração da mísera rotina, aquele maluco, aquele “anjo podre” mal cheiroso, servia-lhes como um pequeno espetáculo estimulante.
Próximo dali vizinhos abastados em suas mansões fortificadas, incomodados pela pantomima de mais um Zé nada, chamaram a polícia.

De certa distância, os policiais, viram uma pequena multidão de esfarrapados formando um semi-círculo.
Ao chegarem cautelosamente, seus olhos não acreditavam no que viam. Nunca em suas vidas tão miseráveis haviam vivenciado algo tão inusitado.
Todos os mendigos tiravam suas roupas, peça por peça e as jogavam na grama geada que aos poucos avançava para revestir todo o campo e o bosque com sua tonalidade solidão.
A cada passo dado, os policiais sentiam um estranho aquecimento gradativo. Próximo aos mendigos o calor era tanto que tirar a roupa tornava-se um impulso irresistível. E foi o que os policiais fizeram juntando-se aos mendigos desnudos.

Em meio ao pra lá de maravilhoso efeito cromático por entre as copas dos cedros, a vizinhança empolada e indignada com a falta de atitude dos policiais, decidida, se aproximou daquela roda de gente com estranha atitude.
A mesma reação de todos que ali estavam presentes, tomou conta do grupo. O calor aumentava e cachecóis, mantas importadas, chales e bonés eram atirados ao solo por efeito de um calor anormal que a todos afetava.

De costas para todos, sentado em cima de um largo tronco decepado de cedro com pouco menos de um metro de espessura, estava sentado de pernas cruzadas tal qual um yogue, o anjo podre. Totalmente nu, olhava para as próprias mãos. O silêncio absoluto fazia eco aos ouvidos abstraídos dos presentes àquela cena jamais imaginada.

Aos poucos, ruídos de estalos esparsos aumentava de volume a medida que também aumentava o calor. Um raio preciso de 50 metros isolou a área da neve e do frio.
A essa altura os cedros abrasavam-se e abrangente vermelhidão tomou conta de tudo que havia por perto.
Um odor de madeira queimada passando para algo parecido com carne em putrefação, dominava o ar em torno de algumas pessoas. Outras mantinham-se impassíveis. O número das que sentiam náuseas com o odor cada vez mais fétido, aumentava. Começaram a vomitar e seus corpos imediatamente entraram em convulsão. Gritavam alucinados que era o cheiro de podridão daquele “anjo” sujo. Saíram correndo atropelando uns aos outros. O frio abraçou novamente seus corpos expostos a suas estúpidas percepções físicas. Correram trêmulos em ziguezague a procura de abrigo para o frio. Apenas sete restaram daquela turba. Sete e mais nenhum. Mantinham-se ali imóveis, abstraídos, aquecidos, alimentados por um calor protéico.

O que para os outros ardia em suas narinas como fétido, para esses sete elevou seus olfatos a um sândalo orgônico.
De súbito os sete notaram o anjo podre elevar-se em chamas. Labaredas consumiam sua carne; seu corpo desmanchava-se como cera quente até restar somente uma poça escura aquosa.

Não havia mais anjo podre. No seu lugar surge uma bola de luz crescente. Cresceu e cegou aos sete assustados desnudos: 3 mendigos, 3 policiais e 1 abastado.
A cegueira os levou a perda da consciência; a inconsciência os levou a despertar em meio a um comício político onde um empertigado candidato bradava seu projeto social para acabar com mendigos.
Olharam-se e sorriram em silêncio.O frio avançava implacável. Não havia o que temer e nem tremer. Havia uma flauta; havia o bosque.

Leandro Soriano